Breve relato de uma “fascinante aventura”

Formal, apenas, pois Marcelo será sempre docente onde quer que esteja. A um verdadeiro professor somente a Grande Ceifeira coloca um ponto final na dedicação à investigação e à transmissão de conhecimento.

Foto
Daniel Rocha

Para quem tem 41 anos e leva 18 de docência universitária, o dia da jubilação é ainda realidade longínqua. Hoje tornou-se mais próxima e quase aterradora ao ouvir a lição do Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Habituados que estamos ao Professor-Presidente, como aqui no PÚBLICO já o apelidei, que, apesar de homem de afectos, não demonstra tanto os seus, ao invés do que sucedia amiúde com Jorge Sampaio (de tão grata memória), hoje não foi excepção. Não o vimos chorar no fim da sua prelecção ante uma Aula Magna de pé, aplaudindo por largos minutos. Talvez os olhos mais brilhantes, como se as lágrimas quisessem assomar, mas as circunstâncias endógenas e exógenas o não aconselhassem.

Quantas emoções terão convivido no espírito do ser humano que sempre se assumiu como professor, que sempre voltou à sua “praça-forte”, que confessou a todo o momento que as demais tarefas seriam passageiras. E hoje, perante tão ilustre audiência, a consciência presente do fim formal das tarefas académicas. Formal, apenas, pois Marcelo será sempre docente onde quer que esteja. A um verdadeiro professor somente a Grande Ceifeira coloca um ponto final na dedicação à investigação e à transmissão de conhecimento.

Poderia ter falado de tanta coisa. Poderia ter sido longo na aula que, a bem da verdade, foi curta; mais curta que o tempo lectivo que lhe está habitualmente designado. E aqui está mais uma lição: o essencial resume-se a pouco e quem domina de facto as matérias tem a competência para fazer de cada palavra um monte expugnável de significados e significantes. Percorreu a sua história pessoal, desde a entrada como aluno na licenciatura em Direito até ao dia de hoje. Estabeleceu as grandes linhas-força de cada década, a par da sua evolução na carreira académica. Relembrou que a Universidade só pode ser “caminho de desafios”, historiografando o que apelidou de “passagem de uma Universidade pioneira a Universidade criadora”. E como só criador pode ser o ensino superior, terminou despindo as vestes doutorais para assumir a “união pessoal” (como a apelidou uma inspirada Leonor Beleza), falando como Presidente da República. Criação rima com esperança, pois é sempre esta virtude que guia quem busca o conhecimento por tentativa e erro.

Lembrou a sua passagem por várias universidades, tendo-me tocado de modo particular, como compreenderão, a referência à minha Universidade do Porto, cuja Comissão Instaladora da Faculdade de Direito integrou, onde leccionou algumas aulas e tive o gosto de ouvir o já tão famoso professor contar estórias do “Verão quente”, do que representou ser deputado à Constituinte, como também agora lembrou. Sentava-se na mesa e bamboleava as pernas, começando sempre pela pergunta retórica “De que vamos falar hoje?”. Preparados para tomar notas, rapidamente percebíamos que eramos incapazes de acompanhar o ritmo e que muito mais ganharíamos em simplesmente ouvir e aprender. Já na altura abordava aquilo que hoje definiu como “um Direito desafiado”, cada vez mais pelos “forasteiros, pelos diferentes”.

Marcelo não seria Marcelo se mesmo no dia de hoje não deixasse uma pequena bicadinha ao ambiente académico, tantas vezes viperino e irrespirável. Lembrou aqueles que estão sempre “à espreita de uma vaga” para satisfazer egos enormes. Não o disse assim, pois claro, por se chamar Marcelo e por trazer colada à carne a condição de Chefe de Estado. Apesar de “licenciado e mestrado na Pré-História”, o professor sempre acompanhou e marcou os tempos e agora vivemos o cansativo império do politicamente correcto.

Será para sempre aluno, como ainda hoje se canta nos “Amores de Estudante”, tendo embarcado numa “verdadeira e fascinante aventura”, não apenas na academia, mas agora na Presidência. Não foi por acaso que o seu discurso de vitória ocorreu na Faculdade de Direito de Lisboa, a sua alma mater, o lugar onde se volta para partir mais forte, qual colo maternal.

Lembrou tão a propósito o meu amado Sebastião da Gama, para mim o nosso maior pedagogo, e citou a tão célebre passagem – e tão verdadeira – de que aprendemos mais com os estudantes que aquilo que lhes transmitimos. Permito-me acrescentar que, por certo, também acudiu ao espírito de Marcelo aquele trecho do mesmo autor em que nos contava que o sumário daquele dia tinha sido “o que eu quero, fundamentalmente, é que vivam felizes”. É o que digo na última aula de cada ano lectivo aos meus estudantes, tal é o impacto que estas palavras ressoam em mim.

O encerramento formal da vida académica foi hoje. A parte material dessa vida segue dentro de instantes, ou seja, logo após a última palavra do discurso. E isto na medida em que, em pessoas com verdadeira vocação para o que fazem, como é o caso de Marcelo, apenas cessa o ensino com o último suspiro. No específico caso em apreço – e acreditando o Presidente numa vida supra-terrena –, ainda dará lições no transcendente e eterno desconhecido.

Obrigado, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa!

Sugerir correcção
Comentar