Crime e castigo

Margaret Atwood leva-nos para um mundo desconfortável e sombrio onde tanto a religião como a ciência não servem de bálsamo nem de salvação.

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Atwood tem sido “redescoberta” como autora de obras passíveis de serem mostradas na nova linguagem do streaming Mark Blinch/REUTERS

Grace Marks caminha com passos cadenciados, de cabeça baixa, em silêncio. Acompanha o ritmo das outras reclusas, na volta ao pátio. É uma prisioneira modelo, discreta, calada, submissa. Tem 23 anos e foi encarcerada aos dezasseis. Quando começa a contar a sua história corre o ano de 1851. Cumpre pena de prisão perpétua pelo homicídio do seu antigo patrão, Thomas Kinnear, e da governanta deste ( e amante), Nancy Montgomery. O seu cúmplice, James McDermott, foi rapidamente enforcado. A ela, pouparam-lhe a vida, por ser muito nova. Grace, uma paupérrima imigrante irlandesa, abusada e abandonada pelo pai, é um enigma, um caso que desafia a razão, a lógica e a imaginação. É uma aberração, uma atracção de feira, tão fascinante como o homem-elefante ou a mulher barbuda. Merece um estudo apurado, uma investigação impiedosa, uma avaliação minuciosa. Encerrada na prisão de Kingston (Canadá) e entregue à mercê das boas intenções de um grupo Metodista que acredita ser ela passível de “salvação”, vê chegar Simon Jordan, um jovem médico norte-americano, convocado por ser especialista no que poderíamos chamar hoje de psiquiatria. Jordan está interessado em estudar o caso de Grace porque quer fazer nome na área das perturbações mentais — uma ciência nos seus primórdios — e fundar um asilo privado. As sessões com Grace, organizadas pela mulher do director da prisão, resgatam a estranha reclusa de uma monotonia severa e violenta. Na prisão as regras são duras, sádicas, a individualidade negada. Jordan quer perceber Grace, quer descobrir se ela é louca — um dos argumentos que a salvou da forca — ou se é sã de espírito. Grace, escondendo uma feroz desconfiança, faz-lhe a vontade, contando-lhe a sua vida, com inúmeros detalhes, sem, no entanto, desvendar o mistério mais perturbador: será ela culpada ou inocente, um demónio ou uma vítima?

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