Tortura, a gangrena da República

“Maurice Audin foi torturado e depois executado, ou torturado até à morte”, declarou em nome da França Emmanuel Macron. Audin era um jovem matemático e comunista, “desaparecido” durante a Batalha de Argel em 1957. O Presidente ajusta contas com um tabu de 60 anos e uma ignomínia da História francesa.

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Emmanuel Macron reconheceu na quinta-feira a responsabilidade do Estado francês na morte sob tortura de Maurice Audin, preso e “desaparecido” em 1957, durante a “batalha de Argel”. Não traz novidade quanto aos factos. “Esta declaração inscreve-se na grande tradição das decisões de reconhecimento histórico como, num outro registo, o discurso de Chirac sobre o Vél’Hiv”, escreve no Le Monde Benjamin Stora, historiador da guerra argelina.

Em 1995, o presidente Jacques Chirac reconheceu a responsabilidade francesa na deportação 13.152 judeus concentrados no Vélodrome d’Hiver em Paris, numa operação organizada por 9000 funcionários franceses, e depois enviados pelos alemães para campos de extermínio. Em 1998, reconheceu também o massacre de 15 mil argelinos em Sétif em Maio de 1945. Em relação a Audin, François Hollande deu um primeiro passo em 2014, ao reconhecer que ele não se evadiu mas morreu na prisão. Agora o Presidente vai mais longe, mostrando que o desaparecimento de Audin “resulta de um sistema, não é um acidente, não é um erro nem um excesso”, sublinha a historiadora Sylvie Thénault.

Textualmente: “Reconhece, em nome da República Francesa, que Maurice Audin foi torturado e depois executado, ou torturado até à morte (...). Reconhece também que, se a sua morte é em última instância obra de alguns, ela também só foi tornada possível por um sistema legalmente instituído (...)”, que deu ao exército “poderes especiais”.

Dirigindo-se a Josette Audin, a viúva, que visitou na quinta-feira, disse: “Cabe-me pedir-lhe perdão.” Ela acaba de vencer uma batalha que tava há 61 anos (ver PÚBLICO de ontem).

Um caso emblemático

Em 2001, um dos grandes responsáveis pela tortura, o general Paul Aussaresses, assumira a execução extrajudicial de 3024 pessoas durante a “batalha de Argel” de 1957. Quase todas torturadas e “desaparecidas”. Mas a morte de Audin transformou-se num caso emblemático. Jovem matemático, assistente na Universidade de Argel e militante comunista e anticolonialista, tinha 25 anos quando os pára-quedistas do general Jacques Massu o levaram de sua casa, no dia 11 de Junho de 1957, para o centro de interrogatórios de El Bihar. Foi visto, estendido numa maca, com cabos eléctricos ligados a um gerador, por outros dois presos, o jornalista Henri Alleg e o médico Georges Hadjadj.

Josette foi incansável na busca do marido (ambos na foto). A denúncia em França estala imediatamente. Em Dezembro, a Sorbonne promove as provas da sua tese de doutoramento in absentia. O historiador Pierre Vidal-Naquet publica em 1958 L’Affaire Audin, uma investigação em que afirma que o jovem matemático morreu sob tortura. Em Abril de 1959, Jean-Jacques Servant-Schreiber, fundador e director do L’Express, publica um editorial intitulado: “O caso Audin é o nosso caso Dreyfus.” Trata-se de saber “quem comanda os destinos da nação, se o Estado ou os carrascos da guerra”. Exige que “se desenterre o corpo de Audin e se julguem os responsáveis conhecidos em tribunal de guerra”.

Os militares deram a versão de que Audin se evadira durante uma transferência de prisão. Há duas versões da sua morte. Segundo uma, de origem policial, foi estrangulado por um tenente no fim do interrogatório. Segundo uma confissão de Aussaresses, às portas da morte, teria sido apunhalado por um sargento e enterrado numa fossa nos arredores de Argel.

A questão da tortura

O debate sobre a tortura na Argélia nunca morreu. Em 2001, Aussaresses publicou um livro — Services spéciauux. Algérie 1955-1957 — em que assumia e justificava a tortura e as execuções extrajudiciais (ver PÚBLICO de 3 de Junho de 2001). Era um antigo herói da Resistência reconvertido em torcionário. Reacendeu o debate.

Duas palavras sobre o contexto. Em fins de 1956, a Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina lançou uma campanha de atentados em Argel, a tiro ou com granadas e bombas. O general Massu, comandante da 10.ª brigada pára-quedista, recebe plenos poderes para liquidar o terrorismo, “por todos os meios”. Aussaresses era o oficial responsável das informações e do contraterrorismo. Massu inicia a “limpeza” em Janeiro, enquanto a FLN responde com uma escalada terrorista: cinco atentados em Fevereiro, 50 em Maio, 80 em Agosto, 120 em Dezembro. Os “atentados cegos” em lugares públicos fazem numerosas vítimas.

A chave do contraterrorismo é obter informação rápida, através de rusgas maciças e da tortura sistemática e brutal: espancamento, electricidade e a “banheira” — a simulação de afogamento, a que os americanos chamam waterboarding. No fim do interrogatório, os presos, tenham falado ou não, são na maioria executados, como “irrecuperáveis”.

A tortura visa fornecer informações. No caso argelino, os métodos são brutais para provocar, como se diria em linguagem militar, “choque e pavor”. Mas é muito mais que isso. No homem profundamente torturado há algo que morre. É uma forma de assassínio simbólico. Mas também o torcionário perde a sua humanidade, torna-se num “aleijado moral”.

Foi eficaz a tortura? Os seus sucessos tácticos desembocaram numa derrota estratégica. A França perdeu a guerra e a honra. Pior: a tortura acabou por “legitimar” retrospectivamente o terrorismo da FLN. Mas também esta pagou um elevado preço pela sua cultura da violência, que corrompeu a revolução argelina e transformou o assassínio numa prática política banal no seu interior. A França tem outra responsabilidade: foi a repressão do nacionalismo moderado que justificou e deu a supremacia aos adeptos do terrorismo na FLN.

Perto do fim da vida, em 2000, Massu reconheceu, numa entrevista ao Le Monde, a inutilidade da tortura. “Não, a tortura não é indispensável em tempo de guerra, podíamos ter perfeitamente passado sem ela. Quando repenso a Argélia, sinto mágoa, porque [a tortura] fazia parte de uma certa ambiência. Podíamos ter feito as coisas de outra maneira.” Faça-se justiça a muitos militares que recusaram a tortura. E muitos deles foram mais eficazes na recolha de informação. Macron também os relembrou na quinta-feira.

O mais nefasto efeito recaiu sobre a IV República, uma democracia sem Estado de direito, que deu carta-branca aos militares. Um dos autores dos “poderes especiais” e do “por todos os meios” foi François Mitterrand, então ministro da Justiça. Terá dito ao seu cronista Jacques Attali que era o único erro político que tinha a lamentar. A Argélia e a tortura foram a gangrena fatal do regime, caído ingloriamente em 1958.

Ao assumir a verdade sobre Audin, Macron quis redimir um fracasso da França.

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