O Algarve perdeu-se nos carris: “Esse comboio já não existe”

As velhinhas automotoras a diesel andam a “arfar” com o calor, e a linha está electrificada apenas num terço do traçado entre Vila Real de St.º António e Lagos.

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Esta é a terceira de uma série de reportagens do PÚBLICO sobre o estado das principais linhas ferroviárias do país. Ao longo dos próximos dias, acompanhe o dossier A Ver Passar Comboios.

A região está mesmo no fim da linha, quando se fala de transporte ferroviário. A natureza fez deste lugar ao sul um destino turístico, e ficou por aí —  sem carris para se modernizar. A electrificação da linha regional ainda é uma miragem. “Minha, nossa.... meu Deus do céu, que vou fazer!?...”, exclama Rosa Pires, ao chegar à estação de Olhão. Prepara-se para apanhar o comboio para Faro às 7h59, o funcionário da CP informa: “Esse comboio já não existe.” Às avarias constantes das velhinhas automotoras junta-se agora o corte na frequência dos comboios em pleno Verão.

Rosa Pires, brasileira, residente em Portugal há oito anos, está meio perdida, sem saber o que fazer. “Tenho uma criança em Faro para ir cuidar, porque a mãe, minha amiga, não tem com quem deixar o bebé”, explica. O lamento é apenas mais um, entre outros que se ficam por uns sorrisos amarelos de cumplicidade. Vera Cunha, sentada num banco dentro da estação, de óculos de sol, comenta: “Comboios sujos, grafitados, atrasados ou suprimidos em cima da hora faz parte do dia-a-dia.” Há cinco anos, altura em que começou a trabalhar como auxiliar na escola EB1 da Lejana, em Faro, diz, passou a ser utilizadora frequente do caminho-de-ferro. Habituou-se ao desconforto e a horários por cumprir. O percurso, em condições normais, demora apenas 12 minutos. Depois, leva mais 15 a 20 a andar a pé até chegar ao trabalho. “Não há combinação dos horários entre o comboio e o ‘Próximo’, o miniautocarro que faz o circuito urbano”, observa. A queixa da falta de articulação entre as operadoras de transportes públicos é comum a outras regiões do país.

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Quando se fala do material circulante, basta lembrar que o Algarve tem comboios que foram construídos há 52 anos. As velhas máquinas a diesel que fizeram as linhas do Minho e do Porto são as mesmas que transportam milhares de passageiros na linha regional. “São de outra geração e já tiveram muitas vidas”, diz Manuel Tão, investigador da Universidade do Algarve nesta área. A linha também só está electrificada entre Faro e Tunes. A modernização da infra-estrutura (o troço de 48 quilómetros Tunes-Lagos, mais o troço de 56 quilómetros entre Faro e Vila Real de St.º António) já foi objecto de vários anúncios, mas ficou aí. Nos últimos meses, o ministro do Planeamento e Infra-estruturas, Pedro Marques, tem vindo a repetir a promessa da electrificação da ferrovia, tendo como horizonte o próximo quadro dos fundos comunitários. As obras de “requalificação” da EN125, que ainda vão a meio — falta concluir a zona do sotavento —, fazem parte do pacote. 

“O comboio sumiu-se”

O valor estimado para electrificar a linha regional é de 60 milhões de euros. Porém, o custo para manter as carruagens limpas e melhorar o serviço de apoio ao cliente são trocos, quando se pensa em grandes investimentos. Dentro e fora de Portugal, a região reclama para si a “excelência” na qualidade turística, ignorando o estado actual do caminho-de-ferro e o descuido ambiental. Estamos ainda em Olhão, o comboio da manhã do dia 16 de Agosto ainda não chegou. As casas de banho da estação estão encerradas, a degradação do espaço envolvente, a começar pela higiene, não condiz com o cartaz publicitário municipal “Olhão, capital da ria Formosa”. A linha do comboio segue colada à ria e a paisagem, ao nascer e ao pôr do sol, é própria de um bilhete-postal. Por sua vez, a Região de Turismo do Algarve (RTA) publicita: “Algarve, o segredo mais famoso da Europa.” O convite à descoberta das praias que estão do outro lado do cordão dunar surge como um desafio a cada momento. No interior das carruagens, quando o calor aperta e a lotação atinge o pico, o ar condicionado falha. Ao bafo quente que sai das condutas  junta-se o “arfar” dos velhinhos motores a diesel das automotoras.

“O material que deixou de funcionar noutras linhas, por estar obsoleto, é aquele que temos aqui a rolar”, observa o antigo reitor da Universidade do Algarve Adriano Pimpão (secretário de Estado do Desenvolvimento Regional de 1995 a 1997). Assim, a incerteza é uma constante na vida de quem escolhe o comboio para se deslocar entre localidades. “Com sorte, talvez chegue a horas, mas também pode acontecer ficar parado, por avaria, em Vila Real de St.º António”, comenta Vera Cunha. Desta vez, não falhou. Partida de Olhão às 8h20. Rosa Pires não se conforma com facto de ter havido supressão do comboio das 7h59. Puxa pelo horário, pedido no dia anterior. “Como não há comboio, se está aqui escrito?” Fica a falar sozinha. No domingo anterior, conta, saiu da missa na Sé de Faro, e aconteceu-lhe o mesmo. “O comboio sumiu-se.”

Nuno Ferreira Santos
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Velocidade de uma scooter

A viagem Olhão-Tunes obriga a um transbordo em Faro. À hora de ponta, instala-se a confusão. Do outro lado do Algarve, o comboio que deveria sair de Lagos às 6h16 e chegar a Faro às 7h59, foi suprimido. Os passageiros chegaram em dois autocarros às 8h12. Isalinda Marta, de 75 anos, desce da carruagem, põe o chapéu para se cobrir do sol. “Costumo vir a Faro é de carro, não de comboio.” Mudou de meio de transporte, explica, porque o neto tirou carta de condução e ela emprestou-lhe o automóvel. “Estou reformada”, confidencia. Das recordações do tempo em que trabalhava como “governanta de uma vivenda de um produtor de cinema norte-americano, na Fonte Santa [Quarteira]”, exibe uma malinha de mão. “É de marca, muito cara”, diz, mostrando jovialidade. Mais à frente, um casal de namorados, Igor, de 21 anos, Andreia, 17 anos, sonham com passeios românticos e um futuro a deslizar sobre carris eléctricos. Por vezes, os planos saem furados. “O comboio que costuma sair de Olhão às 21h36 chega a vir com 40 minutos de atraso, e uma vez apareceu às 23h00”, revela a rapariga. “Volta, não volta, avaria”, acrescenta.

De férias no Algarve, vindo do Brasil, está o casal Francisco e Elienai. “Adoramos andar de comboio, não alugamos carro e só usamos o autocarro quando não há comboio.” Das belezas da região só contam “maravilhas”, embora critiquem o modo de funcionamento dos transportes públicos. Num dos dias de passeio pelas praias, exemplificam, vinham de Lagos para Faro, o comboio parou em Portimão. Avaria. O resto do percurso, em autocarro, “foi uma chatice”. “Paragem aqui, paragem acolá, nunca mais cá chegávamos.” Quem pretenda ir de Lagos para Vila Real de St.º António, a primeira automotora sai às 6h16, chega a Faro às 7h59, a ligação para Vila Real saiu 11 minutos antes, e a próxima é 58 minutos depois.

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A ferrovia entre Faro e Tunes permite velocidades de 160 quilómetros/hora, mas os comboios regionais só circulam a 120 quilómetros é não é sempre. “Só se estiverem bem-dispostos”, ironiza Manuel Tão, referindo-se ao material circulante, que já ultrapassou o meio século de vida. O Alfa Pendular que liga Faro ao Porto atinge, em teoria, 220 quilómetros/hora. Porém, quando atravessa a serra algarvia, entre Tunes e Amoreiras, fica-se pelos 80 a 90 quilómetros/hora. “A linha foi melhorada, mas o traçado não foi corrigido”, justifica o académico. “O Algarve tem condições para ter um Intercidades entre Vila Real de St.º António [130 quilómetros], quando a linha estiver toda electrificada”, sugere. Do ponto de vista comercial, sublinha, “faz todo o sentido, na medida em que é cada vez maior a procura, da parte de residentes e estrangeiros — falta criar condições”. Por seu lado, o antigo reitor da Universidade do Algarve Adriano Pimpão comenta: “Está-se a discutir um plano regional de combate às alterações climáticas, deixando de fora o comboio como meio transporte amigo do ambiente.” 

As ligações das estações aos principais centros urbanos não existem, e mesmo o aeroporto de Faro (que fica a 1,5 quilómetros de distância da cidade) não tem comboio que lá chegue. “Todos os governos falam nesse ramal como prioridade absoluta, mas o compromisso mais longe a que chegámos foi o de mandar fazer estudos”, diz o presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA), Elidérico Viega. “O Algarve é sempre a última região quando se trata de investimentos em infra-estruturas, — aconteceu com a auto-estrada (A2) e com a via férrea sucede o mesmo”, enfatiza.

Na estação de Tunes, chegado do Alfa Pendular, encontra-se Tomé Sousa. Aguarda pela boleia que o levará até Portimão. “Conheço praticamente todo o país, tenho uma ideia péssima dos transportes públicos no Algarve.” Nasceu no Porto, formou-se em Gestão, estagiou em Lisboa, passou por Aveiro, e trabalha no Algarve há sete anos. “Os comboios regionais são para esquecer”, desabafa. Por regra, utiliza o avião como meio de transporte entre o Norte e Sul. “Hoje, por acaso, vim de comboio.” E a viagem como foi? “Vim a dormir...” De volta a Olhão, faz-se uma paragem de 12 minutos na estação de Loulé. Não existe linha dupla, o que obriga a esperar pelo outro comboio regional que segue no sentido Faro-Lagos. A estação de Boliqueime ficou para trás e metade das letras em azulejos que indicavam o nome da localidade desapareceram. Sinais dos tempos. 

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