Moderno entre os poetas vitorianos

Uma breve introdução à obra de G. M. Hopkins que reúne alguns dos seus poemas mais emblemáticos, assim como importantes cartas deste moderno entre vitorianos.

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Uma torturada individualidade, com uma noção precisa (mas sujeita a severíssimas crises) do que deveria ser a sua poesia

O estatuto de Gerard Manley Hopkins é, ainda hoje em dia, motivo de alguma perplexidade. Muito menos devido à justeza da sua valorização, ou à solidez da sua obra, do que por motivos da sua integração em determinada corrente estética ou período literário. Se os dados cronológicos não autorizam quaisquer dúvidas — a vida de Hopkins decorreu entre 1844 e 1889, ou seja, em pleno reinado da Rainha Vitória —, a sua poesia orientou-se por coordenadas marcadamente outras, em relação aos seus contemporâneos. G. M. Hopkins não viveu totalmente alheio a eles: conheceu Swinburne, Christina e Dante Rossetti, os Brownings, Coventry Patmore e, obviamente, Robert Bridges — futuro poeta laureado e responsável pela primeira edição dos poemas de Hopkins, 29 anos após a sua morte, em 1918. De resto, numa carta de 1864, escrevia Hopkins: “Quase terminei uma resposta ao Limiar do Convento de Miss Rossetti”. A Voice from the World viria, portanto, a responder ao poema No Limiar do Convento, de Christina Rossetti (O Mercado dos Duendes e Outros Poemas, Relógio D’Água, 2001, trad. Margarida Vale de Gato). Segundo uma lenda, talvez apócrifa, quando G. M. Hopkins iniciou o seu noviciado jesuíta, em Manresa House, terá ficado especialmente desiludido quando lhe foi dito que Swinburne seria leitura pouco aconselhada. Por outro lado, o entusiasmo inicial com que recebeu a poesia de Tennyson foi gradualmente esmorecendo — “Comecei a duvidar de Tennyson”, escrevia Hopkins com apenas 20 anos —, e acabaria por censurar no poeta mais velho a dicção pomposa e as tonalidades melífluas do seu lirismo, a sua abordagem plena de convencionalidade. Mesmo Browning, em relação ao qual, aparentemente, poderia sentir maiores afinidades, merecia-lhe o seguinte reparo: “admiro grandemente os retoques e os pormenores, mas o efeito geral, o todo, ofende-me, acho-o repulsivo”. Talvez não por acaso, não era poeta um dos seus contemporâneos de quem foi mais próximo (possivelmente, ainda mais do que de Bridges, por estranho que pareça). Walter Pater, que foi seu professor em Oxford, exerceria sobre o aluno uma influência decisiva, sobretudo pela enérgica defesa do primado da estética e da apreciação individual. Hopkins não foi exactamente um OVNI da poesia do seu tempo, mas talvez um ser dotado de uma torturada individualidade, com uma noção precisa (mas sujeita a severíssimas crises) do que deveria ser a sua poesia. E, embora se possa discutir a “sinceridade” das suas confidências, nomeadamente as que fez a Bridges, Hopkins afirmou claramente, numa das muitas cartas que lhe dirigiu: “Não escrevo para o público. Tu és o meu público, e eu espero converter-te.” (p.62) Um dos pontos em que, possivelmente, G. M. Hopkins mais se distancia de um Tennyson, cuja relação com o público leitor e com o espírito do tempo da era vitoriana eram muito mais tranquilas (ou eram-no aparentemente). Paralelamente a estes elementos, a verdade é que os leitores e as autoridades estavam flagrantemente impreparados para receber a “compressão elíptica” (John Pick) desta escrita, as inovações e a idiossincrasia tonal e compositiva de peças como O Naufrágio do Deutschland — “Mas nós sonhamos ter nossas raízes na terra — Pó!/ A carne decai ante nós, e nós, tal como a flor,// Ondulamos com o prado” (p.26). Este poema, que foi um dos primeiros em que o autor aplicou o “ritmo estalado ou fendido [sprung rhythm]” (p.7), seria sucessivamente recusado na publicação para que Hopkins o destinara — o que lhe confere uma posição duplamente simbólica. Originado pelo naufrágio de um navio alemão no qual morreram cinco religiosas, o poema suscitou o regresso de Hopkins aos versos, após um silêncio poético de sete anos (num gesto a que chamou “massacre dos inocentes”, Hopkins queimara os seus poemas de juventude). E o substrato mais especificamente espiritual do poema, a morte das freiras fugidas à perseguição religiosa, tem um profundo impacto na mundivisão e poesia de Hopkins. Por outro lado, O Naufrágio sinaliza, como um farol distinto, a lendária dificuldade desta poesia. Conforme escreveu Joaquim Monteiro-Grillo (o poeta Tomaz Kim), estas “inovações” constituíam “em certa medida reactualizações — no campo da prosódia e da dicção, cujas consequências ainda hoje se podem considerar do mais revolucionário que a poesia anglo-saxónica regista” (Gerard Manley Hopkins, S.I., 1959). Hopkins não só revitalizava a modulação acentual que vinha da tradição medieva, mas, conforme o próprio poeta escreveu, optava por um “ritmo mais próximo da prosa, o ritmo nativo e natural da fala” (p.61). Escrevendo ao irmão Everard, defendeu Hopkins: “O ritmo fendido devolve à poesia a sua verdadeira alma e o seu ser. Como a poesia é, enfaticamente, discurso, discurso expurgado de impurezas, como o ouro na forja, assim deve possuir enfaticamente os elementos essenciais do discurso. Ora, a ênfase, o acento, é um deles: o ritmo fendido torna o verso acentual, purifica-o até atingir uma ênfase muito mais luminosa, vívida, lustrosa do que a ênfase comum do ritmo normal, que é um lugar-comum”.

Jorge de Sena chamou a Gerard Manley Hopkins um “mestre da modernidade”, e um biográfo moderno do poeta (Robert Bernard Martin) escreveu que “a publicação das obras de Hopkins surgiu como uma revelação para os jovens poetas que precisavam de novos deuses”. Em parte porque a sua obra apenas seria revelada ao público no dealbar da modernidade, mas, sobretudo, graças ao peculiar carácter da sua expressão, Hopkins tornou-se um vitoriano deslocado do seu tempo. Ainda que a título póstumo, começou a ser percepcionado como um autor à parte do que é costume associar aos poetas vitorianos. F. R. Leavis, além de o ter considerado “para o nosso tempo e para o futuro, o único poeta influente da época vitoriana e, para mim, o maior”, descreveu-o como “um dos mais notáveis inventores técnicos que jamais escreveram”. Mesmo num grupo tão heteróclito, onde podem acomodar-se, ainda que desconfortáveis, Tennyson, Arnold, Browning, ou os pré-rafaelitas, Hopkins surge-nos destacável, estranhamente próximo. Estranhamente moderno. Personalidade profundamente complexa, contraditória, com tanto de oculto, nascido no seio de uma família anglicana, convertido ao catolicismo, jesuíta por opção, nunca foi um prosélito. Viveu a fé como uma senda de sofrido autoconhecimento, numa luta implacável de si consigo mesmo, mas também com a tríade “mundo, Diabo e carne”, como diria um sacerdote bem menos inspirado do que este. Hopkins conheceu-os aos três. Viveu no mundo, embora frequentemente como um recluso, enfrentou o diabo em diferentes rostos possíveis do mal, e a carne foi um dos seus motivos de reflexão e de sofrimento mais agudos. Como escreveu em carta a Bridges, “Penso que ninguém pode admirar mais a beleza do corpo do que eu, e é obviamente um conforto encontrar beleza num amigo, ou um amigo na beleza. Mas este tipo de beleza é perigoso. Depois vem a beleza da mente, como o génio, e esta é superior à beleza do corpo, e não deve ser considerada perigosa.” (p.64) Acresce que a sua profunda consciência da oficina poética distingue, claramente, Hopkins da generalidade dos poetas da sua época. As suas reflexões nunca são meros complementos, ou anotações marginais, ou ociosas, mas reflexões que marcariam a história da poesia moderna. A sua prática poética andava sempre à frente da sua teorização, expressão admirável de uma energia criadora angustiosa.

G. M. Hopkins não deixou uma obra especialmente vasta; no entanto, a presente antologia disponibiliza apenas cerca de duas dezenas de poemas, além de uma escolha, igualmente breve (embora necessariamente equilibrada, no conjunto, tendo em conta o volume que é dedicado à poesia), da muito importante prosa do poeta, entre cartas, diários e “outros textos”. Nessa secção final do livro, talvez se pudesse ter prescindido do (mesmo assim pequeno) espaço consignado à sermonística e ao que Hopkins escreveu sobre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Muito embora fosse desavisado obliterar, no percurso de Gerard Manley Hopkins, a inegável importância do fundador da Companhia de Jesus, é igualmente possível que, num volume destinado ao grande público, a inserção de um número maior de poemas e/ou de cartas fosse, ainda assim (no mínimo), um mal menor. Por outro lado, não é possível deixar de fazer um reparo em relação ao facto de a edição ser monolingue. Apesar do garante de qualidade trazido por uma tradução de Mário Avelar, há que ter em conta as especificidades do idioma poético de Hopkins. O que implica que, muito em particular, no caso deste poeta (mas em toda a poesia traduzida, sobretudo em línguas de acesso universal, como o inglês), não fornecer o texto original, em língua inglesa, significa que se priva o leitor interessado de um cotejo que, sem dúvida, enriqueceria a fruição e a inteligibilidade do texto.

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