Pequenos poemas em prosa

Uma poesia, a de Manuel de Freitas, em que o verso dá lugar ao poema em prosa e onde está ausente toda a gala, substituída por uma expressão lapidar, que diz um mundo incapaz de rimar.

Foto
david clifford/arquivo

É sabido que, na poesia ocidental, não coube a Baudelaire a honra de criar o poema em prosa; esse galardão pertence a Gaspar da Noite (Sistema Solar, 2017, trad. Aníbal Fernandes) de Alouysius Bertrand. No entanto, foi com O Spleen de Paris (Pequenos Poemas em Prosa) (Relógio D’Água – Biblioteca Editores Independentes, 2007) que Charles Baudelaire elevou aquela forma poética à sua máxima potência. Curiosamente (ou nada curiosamente), Manuel de Freitas inicia Pedacinhos de Ossos (Averno, 2012), volume que antologia o seu trabalho crítico, com uma referência àquela colectânea baudelairiana como peça determinante para a definição de uma “nova sensibilidade lírica e urbana”. De resto, os vasos comunicantes entre Manuel de Freitas e a obra do autor de As Flores do Mal não se quedam por aí. O segundo livro de Freitas chamou-se Os Infernos Artificiais (Frenesi, 2001), e a secção final do seu livro de estreia, Todos Contentes e Eu Também, Campo das Letras, 2000), Necrotério, inicia-se sob uma epígrafe de Baudelaire. Todavia, talvez se pudesse dizer que a ligação da poesia de Manuel de Freitas com a poética baudelairiana transcende estas aproximações mais óbvias; encontra-se, porventura, a um nível mais subreptício e disseminado, na atitude de quem fala pelos poemas, na modelação de um lirismo de matriz assinalavelmente urbana, na recusa de um recitativo timbrado por uma retórica passadista, de sentimento fácil. Em certa recusa se formou sempre a poesia de Manuel de Freitas: por exemplo, “do esterco mais ou menos consensual dos que então se tinham por poetas” (Beau Séjour, Assírio & Alvim, 2003). Como Baudelaire em face de um Victor Hugo (como nota o próprio Freitas notou no ensaio citado), Manuel de Freitas opôs-se a certas tendências retóricas já analisadas, mas que passam, por notável exemplo, por aquilo que Joaquim Manuel Magalhães descreveu (num texto, originalmente saído no PÚBLICO de 3 de Agosto de 2002, e integrado na reedição de Game Over, Alambique, 2017), e que é com certeza o mais certeiro modo de apresentar a poesia de Manuel de Freitas: “a radicalidade do olhar interior manifestada numa expressividade aberta, declaradamente enviada dos sentimentos pessoais aos sentimentos de quem o queira escutar”.

Depois de ter visto a sua poesia antologiada no Brasil (pela terceira vez, depois de Portugal 0, Vol. 1, Oficina Raquel, 2007, e Manuel de Freitas, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014: ambas a cargo do poeta e ensaísta Luis Maffei), em Suite de Pièces Que L’On Peut Jouer Seul (Corsário-Satã, 2017, com selecção do poeta), Manuel de Freitas publica este ano dois breves livros: Shots e Sob o Olhar de Neptuno. Em ambos, o poeta usou o poema em prosa (com a precisão de Sob o Olhar de Neptuno incluir um poema em verso, Haiku do Barrocal), uma técnica que, não sendo nova, em Freitas, é comparativamente recente na sua produção; na verdade, poderão situar-se em Cólofon (Fahrenheit 451, 2012) e Ubi Sunt (Averno, 2014), os primeiros poemas em prosa publicados em livros de poesia de Manuel de Freitas. Num texto dedicado a Eugénio de Andrade (recolhido em Pedacinhos de Ossos), escreveu Manuel de Freitas: “Eugénio quando escreve em prosa, não é menos poeta.” – apreciação facilmente extensível ao próprio Manuel de Freitas. Em Ubi Sunt, Freitas dedicava, precisamente, a Eugénio de Andrade, “Sombra de Um gato”. A aproximação entre o vigor da prosa de ambos os poetas poderá ser, igualmente, um factor a ter em conta.

Sem querer atribuir uma importância desmedida àquele facto, dir-se-ia, processual, poderá não ser totalmente insignificante a opção pela prosa da poesia. Há mesmo um poema de Shots, Kebab, que parece fazer um cerco algo desprezador à técnica e à arte em que versejar consiste: “era tão fácil, hoje, cederes a um poema, enquanto a cerveja mais lenta do mundo te separava do Natal. Até já ouvias os primeiros versos a assobiarem por entre as árvores iluminadas do jardim de Santo Amaro” (p.8). O poeta concede aos versos uma sonoridade menor, indefinida, algures entre o canto e o ruído; parece-nos ter decidido, por enquanto, quedar-se na prosa da sua poesia. Nesse sentido, o poema em prosa é, mas também não é, um poema. Porque se afasta dos aspectos mais visivelmente associados a uma percepção canónica e generalista da poesia. Porventura a outros, mas talvez seja precipitado tecer um juízo demasiado assertivo a esse respeito. Como se lê em Shots: “não há juízos definitivos. Ainda bem” (p.19).

Se o título de Shots aponta, obviamente, para a brevidade intensa de uma bebida de consumo rápido, sorvida de um trago – uma tematização logo sugerida pela capa do volume, em que a letra “o” se converte no rebordo de um copo –, que se conjuga com o registo curto dos poemas, não há como deixar de sugerir uma outra carga semântica àquele vocábulo. Entre tragos e tiros talvez haja, afinal, mais do que uma ténue aproximação sonora. Tanto mais que, paralelamente à temática das “tabernas e lugares abandonados”, conforme se pode ler na orelha de Suite de Pièces – e um dos poemas de Sob o Olhar de Neptuno descreve em São Brás de Alportel um dos lugares mais “dolorosamente parados” (p.6) –, um dos mais importantes veios de toda a poesia de Manuel de Freitas tem sido a morte – “acreditava apenas no que nos faz viver / a morte” (O Coração de Sábado à Noite, Assírio & Alvim, 2004); “Eu, que vou morrer, desejei-te.” (Aria Variata, Alexandria, 2005); “a morte escreve demasiado bem” (Walkmen, com José Miguel Silva, & etc, 2007). Em Shots, existe uma enérgica e veemente reformulação desse princípio fundador da poesia de Freitas – “Agora que a morte é apenas uma certeza, e a vida uma estéril sucessão de perdas, procurei, contra ti e contra o vento, reinventar o amor.” (p.24) Encarada como certeza, a morte parece-nos, agora, muito menos um tema (e talvez nunca o tenha sido apenas) do que uma condição, um ingrediente tragado, previsto, experimentado, vivido – o que poderia recordar um poema de Jukebox (Teatro de Vila Real, 2005): “À sombra de uma cadeira,/ a morte; nestes versos,/ insonoros, o não saber morrê-la.” Morte enquanto tema ou como fluxo inescapável da própria vida, um pouco à maneira do Álvaro de Campos decadente, que já não é decadentista: “Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já não o sou.”

Shots termina com um poema que recupera a memória do filme Paterson, de Jim Jarmush: “Os poemas são como o mundo: não rimam.” (p.30) Uma constatação que, longe de se circunscrever a uma denotação árida, sugere-nos um diálogo quase contrapontístico com um poema de Os Infernos Artificiais: “No Martim Moniz, em perpétua demolição, nem cheques/ aceitam – quanto mais versos/ que não rimam com nada.” Já não são apenas os versos, ou seja, o processo, o medium, que não conseguem rimar, mas os próprios poemas, ou seja, todo o corpo do texto, independentemente da modalidade que o dá a conhecer. Assim, tal como a morte deixa de ser uma peça temática, para ser um componente muito mais vital (passe o paradoxo), também a relação entre vida e poesia se fundiu de uma forma muito mais inextricável.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários