A CP na encruzilhada

Seria bom ter uma ideia clara sobre a estratégia do Governo para a ferrovia a curto, médio e longo prazo. Senhor ministro, quer mesmo inverter o ciclo de desinvestimento das últimas décadas ou vamos continuar à espera até 2020?

O desinvestimento na ferrovia das últimas décadas não é uma novidade para quem utiliza o comboio como modo de transporte. Para quem olha para os números também não. O investimento na CP atingiu um mínimo de oito milhões de euros (M€) em 2015, tendo recuperado para 16,3 M€ em 2017, um valor ainda reduzido para a empresa de ferrovia de um país moderno com graves carências na frota de que dispõe. O desinvestimento na empresa foi acompanhado pela redução em mais de 9% no número de trabalhadores, de 2957 em 2011 para 2681 em 2017.

A frota da CP está envelhecida e reduzida, sendo composta por material com mais de 20 anos, a carecer de manutenção constante e de reparações. Há nove anos, em 2009, foi aprovado um concurso para aquisição de 74 unidades de material circulante no valor de 370 M€. Este concurso foi anulado no ano seguinte e desde então a frota da CP reduziu-se, tendo-se passado das 89 locomotivas citadas nos relatórios e contas da CP até 2014 para as atuais 31 a partir de 2015, com a transição das restantes para a CP Carga (agora Medway) no âmbito do processo de privatização.

O investimento anunciado para 2018 na renovação da frota em circulação é hoje uma urgência que tem vindo a ser adiada. São também urgentes as contratações para a Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário, a EMEF, impedida durante anos de contratar pessoal e onde parte do material circulante existente fica retido por falta de mão de obra para a sua manutenção, tendo como consequência, por exemplo, a atual redução da oferta regular nas linhas do Algarve, Cascais, Oeste e Sintra.

Como resultado de um incidente na semana passada, em que insuficiências nos sistemas de ar condicionado de comboios alfa pendular levaram a que a CP reduzisse a venda de bilhetes durante a vaga de calor, veio o CDS pedir satisfações ao Governo. É boa altura para nos lembrarmos que entre 2013 e meados de 2017, o conselho de administração da CP foi presidido por Manuel Queiró, então ex-deputado e ex-secretário geral do CDS. É boa altura também para recordar que foi nesse período que se verificou o maior desinvestimento na empresa, a par com a maior quebra no número de passageiros transportados – quebra esta que em 2017 ainda não tinha sido recuperada –, tendo sido atingido o maior valor da dívida da empresa, superior a 4100 M€, em 2014. 

O que move hoje quem aponta um colapso da CP? É que, de acordo com os números da empresa em 2017, verificou-se um aumento do investimento, redução da dívida para cerca de 2600 M€ – o valor mais baixo dos últimos 12 anos – e uma receita de 250 M€, a maior desde 2006...

É claro que estes números por si só não são suficientes para assegurar a recuperação da CP, nem a qualidade do serviço público que presta, mas é também claro que mostram que a empresa se pode encontrar a iniciar uma fase de inversão de ciclo, essencial para a sua competitividade com a aproximação da liberalização do transporte ferroviário de passageiros até 2020. Assegurar esta competitividade a médio prazo fará parte da estratégia do Governo? E a mais longo prazo, fará parte das prioridades do Programa Nacional de Investimentos 2030?

Seria bom ter uma ideia clara sobre a estratégia do Governo para a ferrovia a curto, médio e longo prazo. Até lá será preciso ver o que o Governo faz, para crer no que o Governo diz querer fazer. E o que deve fazer é abrir rapidamente o concurso de aquisição de material circulante, em “eterna” preparação, e efetivar o recrutamento de cerca de uma centena de novos trabalhadores especializados para a EMEF de forma a assegurar as operações de reparação e manutenção da frota. Aí sim, poderemos começar a acreditar que a CP é uma empresa estratégica para o Governo até e para além de 2020 e que vem aí a tal "torrente que estanca a sede da espera", como citou o ministro do Planeamento e Infraestruturas (in PÚBLICO 12.09.2017) a propósito da urgência na recuperação do sector ferroviário após anos de desinvestimento. 

A confirmar-se, a demissão do Conselho de Administração da CP será um mau sinal para a promessa de inversão de ciclo na empresa. Mostrará que não foram concretizadas as expectativas da administração quanto ao papel que cabe ao Governo para suprir as maiores necessidades da empresa e será caso para perguntar: senhor ministro, quer mesmo inverter o ciclo de desinvestimento das últimas décadas ou vamos continuar à espera até 2020?

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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