Mala meio cheia ou meio vazia?

Com o final do estágio, a pele de estudante internacional caiu-me de vez. Quando decidi ficar na Suécia por tempo indeterminado para tentar encontrar emprego, a mala que eu carregava era já diferente. Mais pesada, habituada a incertezas e a mudanças repentinas de direcção.

Foto
Arnold Exconde/Unsplash

Cheguei à Suécia no Outono de 2013, com 22 anos, uma mala cheia de sonhos e alguma ingenuidade. Por essa altura, a ideia de fazer as malas para estudar noutro país estava envolta numa grande aura de mistério e excitação. Sou da geração Erasmus e já ia atrasada.

Tinha frescas todas as teorias discutidas nas aulas de Relações Internacionais e a certeza de que a educação recebida até aí (na universidade e em casa) não me deixaria ficar mal. E não deixou. Fui viver para uma residência de estudantes, fiz amigos do mundo inteiro, o inglês tornou-se língua franca na minha vida, o entusiasmo e as boas notas confirmavam que tinha feito a escolha certa.

Mesmo depois de acabar o mestrado, o rótulo de “estudante internacional” ainda me assentava relativamente bem. Arranjei um emprego à noite como distribuidora de jornais, enquanto fazia um estágio na minha área durante o dia. Trabalhar dia e noite abriu-me a cortina para o mundo dos imigrantes, mas no fundo continuei do outro lado. Se corresse mal podia sempre voltar para casa. A casa portuguesa, com certeza.

Com o final do estágio, a pele de estudante internacional caiu-me de vez. Quando decidi ficar na Suécia por tempo indeterminado para tentar encontrar emprego, a mala que eu carregava era já diferente. Mais pesada, habituada a incertezas e a mudanças repentinas de direcção.

O meu inglês polido por Cambridge já não impressionava tanto como antes, as cartas de rejeição magoavam como estalos e os meus amigos estrangeiros tinham passado a ser uma lembrança constante do quão difícil era fazer amigos suecos — e mais difícil ainda fazer patrões suecos. Mas um dia, sem saber bem como, acabei por pousar a mala.

As ruas deste país estão cheias de pessoas com malas atrás. Algumas muito mais pesadas do que a minha, que carrega saudade e um bocadinho de suor, mas não carrega sangue nem lágrimas, felizmente. Sei que em muitos momentos importantes sou mais “expatriada” do que “imigrante”. O meu passaporte e a minha aparência, além do meu diploma, são um enorme luxo. Ter uma casa à qual posso sempre voltar, também.

Mas é igualmente certo que a palavra “imigrante” se tem tornado, com o passar do tempo, parte da minha identidade. Na rua, no centro de saúde, no trabalho, no meu bairro, onde os vizinhos árabes fumam cachimbo de água no jardim e os latinos metem conversa comigo em espanhol na fila do supermercado... sou imigrante. Reconhecem em mim uma igualdade na diferença. E isso, podendo parecer pouco, é muito.

Hoje pus-me a pensar nos próximos cinco, 10, 20 anos. Se ainda aqui estarei, quantas malas terei feito e desfeito. Se conseguirei quebrar algumas barreiras culturais para poder fazer o que mais gosto. Se serei uma mãe portuguesa com sotaque e mãos na cintura. Se os meus filhos quererão aprender português, ou se rejeitarão um elemento tão diferenciador como a língua. Se algum dia vou querer voltar a Portugal. Se há em mim e para mim, realmente, algum lugar.

Pergunto-me se verei a mala meio cheia, ou meio vazia.

Sugerir correcção
Comentar