Em defesa de Catarina Martins, a burguesa

Deixem, por amor de Deus, Catarina Martins ser burguesa à vontade. A extrema esquerda só é perigosa quando é revolucionária, e só é revolucionária quando nada tem a perder.

Também não vale a pena exagerar. Tanto foi o entusiasmo em torno do investimento imobiliário de Ricardo Robles, que de repente já há uma fila de gente a bater à porta dos negócios familiares de Catarina Martins, com ar indignado. Objectivo: provar que por trás de cada bloquista há um especulador clandestino, que utiliza o seu radicalismo pequeno burguês de fachada socialista para camuflar opíparos investimentos em alojamento local. Era giro que assim fosse, mas nada indica que assim é. Por isso, manda o rigor e os bons modos não confundir coisas, até para não dar razão àqueles que acham que todo este caso foi apenas uma manobra conspirativa da direita, para pôr em causa o brilhante trabalho do Bloco na luta contra aquela palavra que agora toda a gente usa e que me lembra sempre casas de repouso para a terceira idade: gentrificação.

O negócio do Ricardo nada tem a ver com o negócio da Catarina. Limitam-se ambos a arrendarem imóveis e a terem na carteira o cartão de militante do Bloco de Esquerda. Catarina Martins transformou uma casa dos pais do marido, mais uns palheiros abandonados na zona do Sabugal, num pequeno negócio de turismo rural. A empresa, na qual detém uma posição minoritária (apenas 4%), é gerida pelo marido e pelos sogros – o que até é bonito, e valoriza a importância da família tradicional, para alegria do CDS-PP. Na notícia do jornal online Eco, ficamos a saber que “a coordenadora do BE fundou a Logradouro Lda. com o marido há quase dez anos e foi sócia-gerente da empresa até final de 2009, altura em que assumiu funções como deputada em regime de exclusividade. Actualmente, a empresa explora quatro empreendimentos turísticos e uma unidade de alojamento local no concelho do Sabugal, distrito da Guarda.” Tudo certo.

A unidade de alojamento local é modesta (dois quartos e duas camas), e parece que a reconversão dos antigos palheiros para turismo recebeu 137,3 mil euros ao abrigo do QREN. Há gente que decidiu embirrar com isto tudo: com o negócio turístico de Catarina, com o facto de o Bloco não apreciar a União Europeia mas ela andar a usufruir de fundos europeus, com o ordenado que a Logradouro Lda. supostamente paga aos seus colaboradores, e até com o mau gosto das colchas das camas, segundo as fotos disponíveis no Airbnb. Pois bem: tirando a opinião sobre as colchas das camas, eu discordo de tudo. A senhora Catarina tem toda a legitimidade para ter um pequeno negócio familiar na província; isso em nada contradiz o seu discurso político; e quaisquer comparações entre apostar no turismo em Lisboa com um prédio comprado à Segurança Social ou investir em palheiros devolutos no Sabugal são absolutamente descabidas.

Mais do que isso: deixem, por amor de Deus, Catarina Martins ser burguesa à vontade. A extrema esquerda só é perigosa quando é revolucionária, e só é revolucionária quando nada tem a perder. Um vereador que acabou de investir um milhão de euros num prédio não quer uma revolução. Tal como não quer uma coordenadora do Bloco com casas a render na Beira Alta. A hipocrisia do Bloco deve ser denunciada, com certeza, mas deixem o partido aburguesar-se, que só lhe faz bem. O PCP é mais coerente – só que também é mais perigoso. Preocupa-me mais Miguel Tiago, que deixou o Parlamento com críticas à moderação do PCP, do que Ricardo Robles. Os protestos esquerdistas do Bloco são parte da coreografia do regime. Enquanto houver Sabugal, há democracia liberal. Negoceia, Catarina, negoceia.

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