Urban sketchers: isto não é apenas um desenho

Gabriel Campanario, o inventor do colectivo urban sketching. “Convidei aqueles de que gostava mais. Disse-lhes ‘vocês são os correspondentes nas vossas cidades’."

Papel, design, design de produto
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Manuel Roberto
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Gabi acaba de chegar. “Não se pode virar uma esquina no Porto sem nos depararmos com um assunto digno de um esboço”, escreve na sua conta de Instagram. Nas folhas do seu pequeno caderno já vive a imponente fachada barroca da Igreja da Misericórdia na atarefada Rua das Flores e a vista do seu quarto de hotel — para a Ponte Luiz I e as cores quentes dos telhados do casario. Gabriel Campanario nasceu em Barcelona, conta histórias no The Seattle Times (escreve-as e ilustra-as) e é o principal responsável por a expressão urban sketching nos ser hoje familiar.

O manifesto está quase a fazer dez anos. Ponto a ponto. 1 — Desenhamos in situ, no interior e no exterior, capturando directamente o que observamos. 2 — Os nossos desenhos contam a história do que nos rodeia, os lugares onde vivemos e por onde viajamos. 3 — Os nossos desenhos são um registo do tempo e do lugar. 4 — Somos fiéis às cenas que presenciamos. 5 — Usamos qualquer tipo de técnica e valorizamos cada estilo individual. 6 — Apoiamo-nos uns aos outros e desenhamos em grupo. 7 — Partilhamos os nossos desenhos online. 8 — Mostramos o mundo, um desenho de cada vez.

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2006. Gabriel acabara de chegar a Seattle e queria muito melhorar a sua habilidade como ilustrador e desenhador. “Tudo me parecia novo”, conta à Fugas. “Comprei um pequeno caderno e desenhava tudo o que via.” Com sensivelmente dois anos, o Facebook e o Twitter ainda não se tinham popularizado e Gabi lembrou-se de tecer no Flickr uma rede que “reunisse desenhos de todas as cidades do mundo”. “Em 2007 chamava-se urban sketches, desenhos urbanos, e era um lugar onde podíamos partilhar os desenhos que fazemos nas ruas e nas cidades a partir da observação. Era muito gratificante todas as noites ir a essa página ver o que tinha desenhado o Pete na Califórnia ou Simonetta em Nápoles...” No ano seguinte, no dia 1 de Novembro, surgiu o blogue colectivo. “Convidei aqueles de que gostava mais. Disse-lhes ‘vocês são os correspondentes nas vossas cidades’. Para além do desenho, teria um comentário sobre a própria experiência. Pedi que contassem um pouco mais daquilo que está a acontecer nas suas cidades. Interessa-me o que está atrás da fotografia, a história do que está atrás da imagem”, explica este urban sketcher, ferramentas (caneta, lápis e aguarelas) prontas para o Simpósio Internacional, que este sábado termina no Porto — e que deixa pelo caminho um rasto de histórias ilustradas por 800 pessoas (#uskporto2018symposium no Instagram).

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“As pessoas tiram fotografias, eu faço desenhos”, sublinha. Para Gabi, os desenhos são “documentos visuais” tão importantes como aqueles que Victor Steinbrueck revelou nos anos 1960, em Seattle, e que muito provavelmente salvaram o Pike Place Market da destruição. “O arquitecto editou um livro de desenhos desse mercado [Market Sketchbook] para chamar a atenção. ‘Isto que temos aqui é muito valioso, não o destruamos.’ O desenho pode transformar-se numa forma de activismo”, avisa Gabriel enquanto escreve o nome “Bolhão” na sua lista to draw no Porto.

A missão dos urban sketchers — “um nome engloba gente de diferentes profissões e formação; não é um movimento profissional; cabe lá todo o mundo” — passa por “documentar um determinado lugar num determinado momento” porque o mesmo sítio muda de dia para dia. Os urban sketchers “não querem fazer postais bonitos”. “Desenhar ajuda-te a apreciar o que te rodeia. Quando praticas urban sketching entendes melhor o que se passa à tua volta porque estás a prestar mais atenção. Alguém me disse um dia que quando paras para prestar atenção à tua volta é como se colocasses óculos novos todos os dias.” Os urban sketchers não fotografam. “Quando vês uma cidade através de um desenho, a reacção é muito diferente do que quando vês uma fotografia. Num desenho não está toda a informação que está numa fotografia, completa-la tu com a tua imaginação. São linhas e cor. O bonito é que o resultado é sempre diferente. Se nos colocarmos os dois numa esquina a fazer uma foto, a foto vai ser igual. Se os dois desenharmos, é impossível que o desenho seja igual. É uma forma de expressão puramente individual. Nós, o nosso lápis e o nosso papel.”

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No Porto — como em Seattle —, o jornalista detecta pequenos detalhes que são oportunidades para falar da evolução das cidades. “Há sempre muito que observar”, escreve numa das suas recentes crónicas publicadas no The Seattle Times, onde surge na ficha técnica como ilustrador. “Perante uma cidade que muda rapidamente, é fácil concentrarmos-nos em tudo o que está a desaparecer. Também é fácil esquecer que a maioria das mudanças é realmente positiva. Neste quarteirão da cidade, vejo as forças do passado e do futuro unindo-se bem”, regista a propósito da “booming Seattle”, cidade que o recebeu há mais de dez anos. “Cada desenhador transmite o carácter da sua cidade. Se tu fores lá, reconhece-la”, sublinha. Cada cidade com as suas linhas, com a sua paleta de cores. “Lisboa tem uma luz muito única e aqui é impossível não dar conta da cor dos telhados e do contraste da pedra com os azulejos. Tudo isso o desenhador captura. Os meus desenhos de Seattle têm cores frias e passam aos amarelos e ocres quando visito Espanha. O propósito é não inventar, é captar o carácter da cidade. Se uma casa tem três janelas não lhe colocas cinco. A intenção é reflectir sobre aquilo que vês.”

E como escolher o que desenhar? “Desenho o que me chama a atenção e também o que sei sobre esse lugar. Leio a história da cidade e às tantas encontro a igreja mais antiga da comunidade negra de Seattle ou descubro que a Madison Street é a única via que liga a Elliot Bay com o Lake Washington”. Um desenho, diz, não é apenas um desenho. “Não está tudo à tua frente. Imaginas o resto.”

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