Deus, a morte e a vida no Cairo nas boas-vindas do FMM

No arranque da 20.ª edição do Festival Músicas do Mundo, Porto Covo foi palco da vida do Cairo pelos Lekhfa, das canções de resistência pelos Barbez, do fado tradicional de Aldina, do precipício de Karina Buhr e da taberna dos Monsiuer Doumani.

Concerto de rock, Guitarra, Baixista, Cantor e compositor, Matthieu Chedid, Cantor
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Os egípcios Lekhfa em Porto Covo: poucas vezes a música pode ser tão bela quanto isto Mário Pires/FMM
Concerto de rock, Cantor e compositor
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Mário Pires/FMM
Matthieu Chedid, Baixo, Cantor e compositor, Microfone, Guitarrista
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Monsieur Doumani MÁRIO PIRES/FMM

Há 19,5 milhões de habitantes no Cairo, a cidade mais populosa do mundo árabe e do continente africano. É um lugar com um enorme peso histórico, com marcas profundas das passagens de vários povos pelo território e com a religião disseminada por todo o seu sistema nevrálgico, fisicamente presente no seu emaranhado de ruas. É um sítio desmedido, excessivo, entalado entre essa História e o seu grito de reinvenção cosmopolita.

Uma das enormes virtudes do Festival Músicas do Mundo (FMM) é a capacidade de, sem necessidade de explicações exaustivas, transportar o público para cenários e paisagens que lhe são estranhos. Com o projecto Lekhfa (Maryam Saleh, Maurice Louca e Tamer Abu Ghazaleh) em palco, é como se houvesse uma cortina entreaberta que permite espreitar a vida da capital egípcia. É como se, quase com uma faculdade mais própria da magia, esse explosivo embate entre uma cultura secular e a necessária procura por uma nova identidade (numa cidade com limites a perder de vista) coubesse, de repente, no pequeno e harmonioso Largo Marquês de Pombal, em Porto Covo.

Aquilo que o trio Lekhfa faz desde que arranca a sua actuação no primeiro dia do FMM com Kont rayeh, tema sobre silenciamento e desistência, é explorar um magnífico conjunto de canções que vivem de uma tensão permanente – espelho desse choque (e, por vezes, conflito) entre o passado e o presente, tentando resolver a sempiterna questão de como pertencer a um tempo específico e não deixar de carregar tudo aquilo que o precede. E é um magnífico concerto, graças a temas como Ekaa maksour ou Nefsif akli, mas sobretudo quando esta queda para um psicadelismo balizado pelos melismas arábicos nunca soa com estrépito, nunca atalha por caminhos fáceis; sobretudo quando diz tanto sobre a vida de uma geração e de um lugar sem precisar de incorrer em descrições detalhadas sobre o dia-a-dia. Poucas vezes a música pode ser tão bela quanto isto.

É a noite de abertura do 20.º FMM e a aposta para uma quinta-feira em que ainda se circula sem dificuldade pelo Largo Marquês de Pombal. Tudo tem início com uma brava e enxuta actuação de Aldina Duarte – acompanhada pela guitarra portuguesa de Paulo Parreira e pela viola de Rogério Ferreira. Cada vez mais uma intérprete de excepção, Aldina passa pelos temas mais marcantes do seu percurso, como Ai meu amor se bastasse, A estação das cerejas, Fado com dono ou Xaile encarnado e revela-se num pequeno gesto que é uma imagem poderosa sobre a sua música: a noite está fria, a fadista menciona entre dois temas que o calor do público compensa a temperatura, a organização entrega-lhe uma manta em palco e ela pouco depois deixa de lhe encontrar utilidade. E está tudo aqui: a preferência pelos meios mínimos de que vive a intensidade devastadora do seu fado, a preferência pelo desconforto para que a vida não se rodeie de enganadores paliativos, o peito aberto à dor, a ausência total de artifícios e filtros.

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Cada vez mais uma intérprete de excepção, Aldina Duarte teve uma prestação brava e enxuta Mário Pires/FMM

A fechar a primeira noite, os nova-iorquinos Barbez trazem o seu jazz atravessado por melodias judias, intromissões do rock ou cancioneiros populares europeus, baseando o concerto no álbum For Those Who Came After, composto por abordagens às canções de resistência da Guerra Civil espanhola. Com duas passagens anteriores pelo FMM (2010 e 2013), não é propriamente uma novidade esta sonoridade sincrética do grupo liderado por Dan Kaufman, satélite dessa figura central da música exploratória de Nova Iorque que é John Zorn. Mas há um valor impagável neste trabalho de recuperação de cancioneiros de resistência, num tempo que Bella ciao foi sonegada ao seu imaginário de luta contra o fascismo em Itália durante a Segunda Guerra Mundial para se tornar um hino dos estádios de futebol e de séries televisivas. Os Barbez chegam-nos com essa bela missão: lembrar que a História conta e não pode ser apagada (passaram por Bella ciao, mas também por A Internacional em palco). Melhor do que isso, até: pode e deve ser celebrada.

Deus, baile, morte e taberna

Sexta-feira é dia de sons com conquista mais imediata no FMM e de enchente na Praça Marquês de Pombal. Há o baile de Verão oferecido pela máquina de afrobeat, funaná e funk dos Fogo Fogo (com direito a citação de I like to move it, dos Reel 2 Real) e as canções soul-gospel das norte-americanas The Como Mamas. A igreja do largo de Porto Covo pode estar escondida atrás do palco, mas não há como esconder Deus do reportório das três cantoras, que professam a sua crença em cada canção, agradecem a sua sobrevivência (ultrapassando uma pobreza que lhes proibia as papas de aveia e, no caso de Angela Taylor, o recente episódio de ter sido baleada e nem isso a ter vergado) à intervenção divina e apelam a que o público visite a sua página na plataforma YouTube para que as visualizações as possam manter em actividade. São uma força imparável, de uma verdade musical que é alimentada por uma religiosidade tão contagiante que leva dança aos corpos até dos não convertidos.

Se Deus é tema omnipresente no concerto das Como Mamas, o mesmo se poderia dizer da morte na actuação da brasileira Karina Buhr. Inventada pelas mãos do dr. Frankenstein, Karina seria composta por partes de Nina Hagen, Lou Reed, Tom Zé e Otto. Há Brasil a rodos na sua música, mas é um Brasil de sotaque pernambucano, permeável às mais variadas misturas, infectado por um espírito punk, um balanço funk-rock e uma propensão para a estranheza e para uma poética do quotidiano. Karina empurra todos os temas no sentido do abismo, enrola o pescoço no cabo do microfone, teatraliza a sua queda final várias vezes, enfia humor negro nisto tudo, canta “me dê um copo com veneno pelo menos, com duas pedrinhas de gelo pelo meio”. Uma figura que fascina por namoriscar em permanência o precipício.

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Monsieur Doumani MÁRIO PIRES/FMM

E tudo aquilo que há de teatral em Karina Buhr desaparece num dos mais honestos e contagiantes concertos do arranque do FMM. Os três cipriotas do grupo Monsieur Doumani servem-se de um tzouras (parente do bouzouki), uma guitarra e um trombone (às vezes trocado pela flauta transversal) para construir uma música enérgica e inventiva, sensível ao rock’n’roll mas tocada com um espírito de taberna em que o vocabulário musical grego e balcânico emerge com facilidade. Nalguns momentos, o trombone de varas soa a uma locomotiva capaz de arrastar tudo à sua passagem. E os temas dos Monsieur Doumani, sem esforço aparente, ouvem-se precisamente assim, num constante balanço para a frente – com tudo o que isso tem de vital e de político.

O PÚBLICO esteve em Porto Covo a convite do Festival Músicas do Mundo

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