Gogol, o riso que se dilui na amargura

O teatro de Gogol ri por cima da tragédia.

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A comédia em Gogol é sempre mais do que o seu primeiro sinal, o riso

O teatro de Gógol ri por cima de um fundo de tragédia. Analisa implacavelmente um país e uma época histórica, anunciando constantes que são de todos os tempos.

Nas obras que compõem O Casamento e Outras Peças, o humor é uma construção com vários níveis. Nos pisos térreos podem estar os gagues do nome errado, os dislates em torno de línguas estrangeiras estropiadas, os desencontros mais óbvios do humor físico, da comédia de erros, mas os andares cimeiros são ocupados pelas depurações da ironia e da sátira social e de costumes. O moralista irónico e complexo das Almas Mortas, mas também o amargo humorista do Inspector, ou de novelas como O Capote, manifesta-se, nestas peças, numa aparente ligeireza feita prática de escrita para o palco, com as várias rugosidades que se podem estimar nos impromptus de várias destas peças. Na verdade, das sete que se reúnem neste volume, só duas se encontram completas: O Casamento e Os Jogadores. Na peça que dá nome à recolha, o protagonista “pé-de-chumbo” (p.38) parece, com pouco abuso da fantasia, uma antecipação miniatural da personagem central do magno romance de Gontcharov, Oblomov (Tinta-da-China, 2015). Simplesmente, em Gógol, as reticências da personagem — pela concentração necessária a uma peça breve e de índole ligeira — atêm-se a uma casmurra incapacidade de decidir casar. No entanto, talvez se pudesse procurar no código genético do preguiçoso Oblomov o deste vacilante patológico que precisa de, “pelo menos, um mês de descanso” (p.83), após uma de várias manobras frustradas de uma alcoviteira de serviço. Mas Gógol não é só credor, neste abreviado deve-e-haver da literatura russa. Nos Jogadores, o crédito está do lado de Púchkin (que também forneceu, a pedido de Gógol, o tema de Almas Mortas e de O Inspector). De resto, como recorda Filipe Guerra, a peça traz mesmo como “epígrafe a citação de um célebre poema de Púchkin, Russlan e Liudmila, sugerindo também o papel iniciador de Púchkin em textos sobre o jogo (Dama de Espadas)”. Dama de Espadas (Contos, Relógio D’Água, 2003, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra) é um conto com elementos sobrenaturais que estão ausentes na peça de Gógol, mas não o estão o chamamento irresistível da boémia, o sortilégio do jogo, a voragem da ruína movida pelas cartas. Isso, enfim, que leva uma das personagens dos Jogadores a afirmar, com sabida veemência: “toda a Rússia teria de se matar a tiro: já qualquer um perdeu ao jogo, ou tenciona perder” (p.141). Curiosamente, Dama de Espadas será, ainda, a alcunha da amante de um dos jogadores da peça.

As peças reunidas em O Casamento e Outras Peças formam, juntamente com O Inspector (Assírio & Alvim, 2009, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra), “o essencial da obra dramática de Nikolai Gógol” (Filipe de Guerra), excluindo-se, após estas duas edições, apenas um exercício de juventude e duas peças inacabadas, que não viriam a ser retomadas pelo autor. Assim como sucede em O Inspector, mas também nos fundamentais textos do “ciclo peterburguense” (como lhes chama Filipe Guerra no prefácio de um deles, O Capote, Assírio & Alvim, 2002, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra), ou até nas Almas Mortas (Assírio & Alvim, 2017, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra), o humorismo e a crítica social permitem a Gógol cumprir dois propósitos fundamentais. Um deles é, obviamente, castigar pelo riso os vícios do seu tempo; outro é produzir um retrato que especifica traços distintivos do seu país. A complexa escadaria burocrática do funcionalismo russo sob os czares é um dos temas recorrentes, dir-se-ia obsessivos, nas peças e na ficção de Gógol. Conforme se lê no Capote, “Não há nada mais susceptível do que todos esses departamentos, regimentos, escritórios, em suma, do que toda essa espécie burocrática.” (O Capote, Assírio & Alvim, 2002, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra); “entre nós”, diz-se, a certa altura, no mesmo Capote, “a graduação vem em primeiro lugar”. Num dos Fragmentos e Cenas que fecham O Casamento e Outras Peças, com o significativo título A Sala dos Lacaios, um dos serviçais legisla deste modo: “A boa conduta consiste em cada qual cumprir o seu dever. O criado como criado, o fidalgo como fidalgo, o prelado como prelado. Senão cada um começava…” (p.188) Quando a alcoviteira de “O Casamento” refere uma noiva em perspectiva para o sempre reticente noivo em potência, descreve-a como “filha de comerciante de terceira classe”, mas “tão boa que nem um general ficaria desagradado com ela” (p.22); o atarefadíssimo Ivan Petróvitch de A Manhã de um Homem Ocupado é elucidativo para com o seu interlocutor — “estou a falar consigo e a explicar-lhe as coisas apenas porque o senhor foi educado na universidade. Com qualquer outro não ia desperdiçar palavras” (p.167). A Rússia, realidade social profundamente alicerçada num complexo sistema de classes, ordens e graduações, é pasto quase ilimitado para um conjunto heterogéneo de intrigas, desmandos, corrupção e situações potencialmente cómicas, que Gógol capta com mão de mestre. Outro dos vectores desta nefasta configuração social é o criado. As personagens dos criados, na ficção e no teatro de Gógol, possuem um carácter profundamente indígena. Entranhados no muito hierarquizado sistema social da Rússia czarista, eles constituem uma emanação explícita de uma ideia de sociedade em que a escravidão não ficara demasiadamente longe. Por outro lado, a sua força universalizante, o seu apelo enquanto poderoso tipo social, tornam-no um descendente longínquo do criado espertalhão e manobrador do teatro da Antiguidade: em Plauto, por exemplo. No Inspector, o criado do protagonista é capaz de ajudar no louvor do seu amo imprestável, apenas por perspectivar proventos em causa própria.

Gógol, modelo de contradições, e contraditor militante — “pedia opinião a toda a gente para depois fazer exactamente o contrário” (Filipe Guerra, de quem se fica sempre à espera de textos mais longos, pelo sabor da sua informação, pela execução capacíssima das suas sínteses) —, carrega para a sua escrita as fontes antagónicas da sua inspiração. As clivagens sociais, a xenofobia — até “idiomática”: “filho de uma finlandesa” (p.181), gritará um dos criados da Sala dos Lacaios — estão lado a lado com fricções locais e regionais — o juiz chama “urso provinciano” (p.175) ao forasteiro que o procura, na peça O Litígio. Por outro lado, esse jovem que diz não haver “aurea mediocritas” (p.127), nos “Jogadores”, faz mais do que ventilar a estafa de um lugar-comum culto; replica um princípio importante para o universo de Gógol: a ambientação de extremos, a passagem airosa do magno ao ínfimo, do majestoso ao derrisório, do sisudo ao estridente. Aquilo a que Filipe Guerra chamou, prefaciando O Inspector, “a violência dos contrastes” no universo criativo de Gógol. Uma lição porventura colhida por Gógol em Victor Hugo, nomeadamente no Cromwell, e nesse jogo entre “sublime e grotesco” que tanto teria a dizer à produção gogoliana. Gógol revela esses contrastes através de uma notável expressividade, com o rigoroso vigor do seu dom para o coloquial, nas suas falas plenas de vida — o que Filipe Guerra chama, em boa síntese, “o carácter concreto e audível da escrita” (p.10). Tudo isso imprime um valor de verdade e empresta um enérgico impulso aos diálogos — “Deus nosso Senhor, que raio de homem! Isto não é um homem, é um sapato velho de mulher, uma caricatura, uma sátira de homem!” (p.89)

Como dizia Belínski, que foi contemporâneo de Gógol, “ainda estamos a rir-nos do desgraçado simplório e já o nosso riso se dilui na amargura” (citado por Filipe Guerra em Diário de Um Louco, Assírio & Alvim, 2002, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra). O humor e a sátira, no nosso autor, traem sempre um fundo trágico. Uma reinterpretação autobiográfica (como sugere Filipe Guerra, no prefácio de O Casamento), ou um estudo transversal da sociedade do seu tempo, a comédia é sempre mais do que o seu primeiro sinal, o riso.

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