OPAQ não é palco de jogos geopolíticos

A Rússia é altamente empenhada na eliminação total das armas químicas.

No dia 23 de junho foi publicado no Público o artigo assinado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido (naquela altura, ainda Boris Johnson) expondo a visão de Londres quanto à situação no domínio do desarmamento químico e à Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPAQ).

Achei importante levar ao conhecimento dos estimados leitores portugueses a nossa percepção do assunto e agradeço ao Público por oferecer esta oportunidade.

1. A ideia-chave do estadista britânico que “a proibição das armas químicas não pode tornar-se irrelevante” não deixa nenhumas dúvidas. É certíssimo e justo, além de ser mais do que óbvio.

No entanto, a outra questão é que passos práticos a Grã-Bretanha sugere para atingir este objetivo. São estes: convocou nos dias 26 e 27 de junho a sessão extraordinária da Conferência dos Estados-Partes da Convenção para a Proibição das Armas Químicas (CPAQ) e no decorrer da mesma promoveu a decisão (considerada ilegítima por uma série de Estados, inclusive a Rússia) de atribuir à OPAQ uma nova função não prevista na CPAQ – nomeadamente, os plenos poderes de responsabilizar Estados soberanos por eventuais violações da CPAQ.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros russo já divulgou o comunicado oficial explicando que métodos Londres tinha usado para garantir este resultado. Não pretendo reproduzir aqui estas avaliações – melhor prestemos atenção aos aspetos concretos da decisão em causa.

2. É de constatar que naquela votação a Conferência dos Estados-Partes evidentemente ultrapassou o seu mandato.

Vale a pena relembrar que a CPAQ é um tratado de controlo de armamento que visa assegurar a abstenção do desenvolvimento, produção, aquisição, acumulação, preservação e uso das armas químicas, tal como da incentivação e estimulação para qualquer tipo de atividade deste género.

Artigo I da Convenção contém a relação completa dos meios para concretizar estes compromissos – através da implementação consciente de medidas meramente técnicas, dirigidas à destruição física das armas químicas e dos estabelecimentos de produção e armazenagem, tal como à renúncia de uso dos produtos químicos na luta contra distúrbios civis e na atividade bélica.

A OPAQ tem tido um papel puramente prático, que é de prestar assistência técnica e pericial aos Estados-Partes na realização destas tarefas e de exercer procedimentos verificativos. A CPAQ não contém nenhuma cláusula que pressupusesse a criação de um mecanismo especial de responsabilizar os Estados por eventual uso de armas químicas. A atribuição destes plenos poderes ao Secretariado Técnico da OPAQ não é possível senão o texto da Convenção seja alterado conforme o procedimento previsto no Artigo XV.

Segundo o Direito Internacional, a atribuição aos Estados da responsabilidade é a prerrogativa exclusiva ou de tribunais internacionais, ou do Conselho da Segurança das Nações Unidas (CSNU). A OPAQ, sendo uma organização apenas técnica, de acordo com o seu mandato consagrado na CPAQ, não tem condições para intervir na matéria política. Não compete nem à OPAQ, nem a qualquer outra estrutura internacional (exceto tribunais internacionais e o CSNU) sentenciar Estados e legitimar a aplicação de sanções contra os mesmos.

É também importante analisar os resultados da votação na Conferência. A iniciativa de Londres foi apoiada por 82 países, ou seja por menos de uma metade dos Estados-Partes da CPAQ (193). Assim, a maioria dos países não se associou de facto com a decisão. O que estamos a acompanhar é o abuso de procedimentos de votação na procura de objetivos dubitáveis, não observando o princípio do consenso.

3. No seu artigo o então chefe da diplomacia britânica lamenta que “OPAQ não tem mandato para afirmar quem realizou os ataques com armas químicas na Síria”. Entretanto, não se explica por que razão não foi prolongado o mandato do Mecanismo Conjunto de Investigação OPAQ-ONU para a Síria.

A Rússia sempre tem sido a favor da investigação imparcial e independente dos factos da aplicação das armas químicas. Foi o nosso país que, entre os outros, iniciou a criação do referido Mecanismo OPAQ-ONU à base da resolução 2235 do CSNU, votou em favor do prolongamento do seu mandato em 2016 (resolução 2319 do CSNU), sugeriu em 2017, em coautoria com a China e a Bolívia, o seu aperfeiçoamento em conformidade com as altas exigências da CPAQ — mas foram os Estados ocidentais no CSNU que vetaram esta nossa proposta.

A Rússia é altamente empenhada na eliminação total das armas químicas. Em setembro de 2017 o nosso país finalizou antecipadamente a destruição do seu arsenal químico. Este facto foi oficialmente confirmado internacionalmente, pelos peritos da própria OPAQ. Ao mesmo tempo, os países do ocidente tentam não reparar que um deles, ao contrário dos seus compromissos decorrentes da Convenção, ainda preserve o seu arsenal nacional de armas tóxicas, adiando a destruição do mesmo.

Como foi assinalado no comunicado do MNE da Rússia ao qual já referi, “a minagem do espirito de consenso, natural para os mecanismos globais de desarmamento e de não-proliferação, tal como o desprezo da posição de outros Estados-Partes da CPAQ, está a aprofundar a cisão na OPAQ e condicionar a integridade da Convenção, bem como a preservação do regime universal do desarmamento e não-proliferação de armas químicas”.

4. Para resumir. Estamos preocupados com o facto de um grupo de Estados, em vez de se empenar no trabalho conjunto no âmbito duma agenda construtiva e em alinhamento com as preparações da 4ª Conferência de Revisão e da sessão ordinária da Conferência dos Estados-Partes da CPAQ (já em novembro), ter optado pela convocação da sessão extraordinária, onde tirou proveito das suas peculiaridades procedimentais para adotar, de facto pela minoria, uma decisão bem perigosa.

Identificamos no fundo destas intenções interesses puramente geopolíticos, lamentavelmente, bem evidentes.

O artigo está escrito seguindo o novo Acordo Ortográfico

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