Russos aprendem a responder ao “Hola, cómo estás?”

Latino-americanos invadiram o país de Putin e nas bancadas venceram por goleada os europeus. Jogaram sempre em “casa”.

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LUSA/MARIO GUZMAN

Felipe é de Salvador, na Bahia, e tem um ar abatido na sala de espera do aeroporto de Kazan. Está com cinco amigos. O português e o espanhol dominavam as conversas por todo o edifício ao início da tarde de ontem. O tema é sempre o mesmo: o Brasil caiu no Mundial. Mas ninguém vai arredar pé da Rússia. A maioria tem bilhetes para a meia-final de São Petersburgo e para a decisão do título em Moscovo. A aventura longe de casa ainda não acabou.

Não foram apenas os brasileiros que compraram antecipadamente bilhetes para a final na perspectiva de verem lá a sua selecção. Muitos outros adeptos latino-americanos fizeram o mesmo. Estão mais ou menos desiludidos com a prestação das suas equipas, mas vão continuar a encher os estádios nos poucos jogos que restam no torneio.

Mexicanos, costa-riquenhos, panamianos, colombianos, brasileiros, peruanos, uruguaios, argentinos e amantes do futebol de todas as paragens e diásporas hispano-americanas invadiram a Rússia desde o início da prova. Com o avançar da competição foram reforçando os contingentes, tornando este Mundial “europeu” no mais latino-americano de sempre.

Depois de 12 anos fora do continente — o último realizou-se na Alemanha, em 2006 —, esperava-se uma grande mobilização de europeus para este Mundial. Não tem sido assim. Estão em franca minoria em todos os estádios, excepção feita, claro está, aos russos nas partidas da sua selecção. A tímida presença dos vizinhos europeus surpreendeu até o país organizador.

Tudo foi compensado com a grande “invasão” latino-americana, incomparavelmente mais ruidosa e divertida. Os russos acham-lhes piada. As cidades que recebem o Mundial têm outro colorido. Tocam e dançam nas ruas — muitas vezes abandonando os carros no trânsito infernal —, falam (ou tentam) com os locais. Parecem estar sempre felizes e não param de rir. Um exotismo por estas paragens.

EUA: 97.439 bilhetes

Muitos não vieram das suas nações de origem, mas daquelas para onde emigraram, principalmente dos Estados Unidos. Este é o segundo país onde se compraram mais bilhetes (97.439), depois da Rússia, segundo dados divulgados ainda em Abril pela FIFA, o organismo máximo do futebol mundial e o organizador da competição. Dos EUA viajaram também cubanos, salvadorenhos, guatemaltecos, equatorianos, venezuelanos e outros adeptos, em menor número, que não têm as suas selecções na Rússia.

No terceiro lugar do ranking das bilheteiras surge o Brasil (74.803). Segue-se a Alemanha (71.687, incluindo muitos imigrantes do outro lado do Atlântico), Colômbia (68.667), México (65.023), Argentina (61.153) e Peru (46.212). Os adeptos mexicanos e colombianos superaram os que se apresentaram no Mundial do Brasil, há quatro anos. Os argentinos são sensivelmente os mesmos.

A encerrar o top 10 surgem a China (42.968) e a Austrália (37.130), seguida de perto pela Inglaterra (34.235), que viu a sua presença no Mundial ter uma queda vertiginosa em relação a 2014. Algo que poderá ser explicado, em parte, pelo clima agreste nas relações entre Londres e Moscovo. Os russos encaram as questões de política externa com grande patriotismo: assumem claramente que não gostam dos ingleses (historicamente) e aplaudiram euforicamente todos os golos que a selecção britânica sofreu no torneio. Tanto como festejaram os seus próprios golos.

Os violentos incidentes ocorridos no Euro 2016, na cidade francesa de Marselha, onde dezenas de adeptos britânicos foram espancados por algumas dezenas de “hooligans” russos, que viajaram propositadamente para França para provocar os confrontos, também estão frescos na memória. Pelo sim pelo não, preferiram aguardar pela carreira da equipa antes de se aventurarem. O melhor que lhes podia ter acontecido foi a eliminação da Rússia, que não terão de enfrentar nas meias-finais.

Meia-dúzia de ingleses

No final do encontro entre a Inglaterra e a Colômbia, nos oitavos-de-final, no Estádio Spartak, em Moscovo, um repórter da rádio BBC 5 não escondia a perplexidade: “É incrível, o estádio era colombiano, estavam só meia-dúzia de ingleses.” Valeu o triunfo dos britânicos, nas grandes penalidades.

A surpresa do repórter inglês estende-se a outros jornalistas no torneio. E chega aos próprios adeptos latino-americanos. “Cadê os europeus? Cadê os belgas?”, perguntavam muitos brasileiros, que transformaram Kazan numa colónia ultramarina. Eram aos milhares, vindos de todos os cantos do seu país. “Encontrei um cara da Amazónia”, gritou um deles.

Claro que no jogo de sexta-feira, a Arena de Kazan era verde e amarela, com algumas pequenas ilhas vermelhas. No final, foram estes minúsculos arquipélagos a festejarem. A noite atenuou algumas amarguras brasileiras.

O mesmo fenómeno ocorreu no México-Alemanha, na fase de grupos, também em Moscovo. Nas bancadas, os americanos esmagaram os campeões do mundo em título. E também surpreenderam no relvado, apesar de o terem feito de forma mais contida (1-0), iniciando a catástrofe germânica neste Mundial.

A capital russa está a três horas de voo directo de Frankfurt e a mais de 16h da Cidade do México, com várias escalas pelo meio. Isto sem comparar o poder de compra nos dois países.

A viagem de 20 horas

A família Ortiz é uma das que atravessou o Atlântico e parte da Europa para assistir ao vivo ao Mundial. A longa viagem começou na cidade de Querétaro, no centro do México, e durou 20 horas. Chegaram a Sochi a tempo de assistirem ao Uruguai-Portugal — outro exemplo do claro domínio latino-americano nas bancadas, apesar de a selecção nacional contar com o apoio de muitos russos.
A ideia da viagem foi de Juan Carlos Ortiz, que trouxe dois dos três filhos. Vai gastar cerca de 150 mil pesos (mais ou menos 6.700 euros). Proprietário de uma gráfica, ainda assistiu com tristeza à eliminação da sua própria selecção pelo Brasil.

Depois, a família viajou para Kazan, onde viu o último e mais forte representante das Américas ser banido pela Bélgica (2-1). Seguiu ontem para São Petersburgo e está esperançada em arranjar bilhetes para o França-Bélgica, nas meias-finais.

O terceiro filho, José Miguel Ortiz, ou Pepe Ortiz, como é tratado pelos amigos, veio da cidade de Charlotte, na Carolina do Norte, para se reunir com a família em Sochi. Foi para os EUA há três anos fazer um mestrado em Artes, na variante Desenho, e trabalha, ao mesmo tempo, em marketing cultural. Está apreensivo com a chegada de Donald Trump ao poder, assim como todos os Ortiz.

Ainda não há números oficiais dos latino-americanos que chegaram à Rússia por estes dias, após a fase de grupos, mas são seguramente várias dezenas de milhares. Muitos conseguiram um bilhete para apenas uma partida (condição fundamental para assegurarem o visto gratuito de entrada no país) e seguem as restantes nas Fan Zones montadas em todas as cidades do torneio.
Nas ruas, os russos já estão familiarizados com a frase “Hola, cómo estás?”.

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