Uma escultura que é como um prédio debaixo de terra

Uma visita ao laboratório criativo de Anish Kapoor guiada pela curadora Suzanne Cotter.

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Anish Kapoor junto à maqueta da colossal onda de terra que vai emergir no Parque de Serralves PAULO PIMENTA

Tentamos imaginar aquilo que Suzanne Cotter nos está a descrever neste remoto prado do Parque de Serralves, no Porto: uma forma com mais de 30 metros de comprimento que emergirá do solo, uma colossal onda de terra. A ex-directora do Museu de Arte Contemporânea de Serralves regressou ao Porto porque é a curadora da exposição Anish Kapoor: Obras, Pensamentos, Experiências que foi inaugurada esta sexta-feira, mas uma das esculturas é um work in progress e a sua construção no prado inclinado ainda não começou. Espera-se que arranque ainda em Julho e que lá para Outubro a segunda parte desta exposição de um dos mais conhecidos artistas britânicos atinja a sua forma final.

“É um projecto muito excitante para o Anish, uma estrutura enorme que envolve mesmo a paisagem”, explica, numa visita guiada que fez com o PÚBLICO nas vésperas da inauguração, a curadora britânica de origem australiana que agora dirige o Mudam, no Luxemburgo. A futura escultura monumental que vai nascer em Serralves pertence a uma série em que Anish Kapoor começou a trabalhar em 2008; é uma obra em que o artista já pensa há muito tempo, sem nunca porém a ter conseguido executar.

“Mas desta série de trabalhos é a primeira escultura totalmente coberta com terra. Cada nova exposição é uma oportunidade para o artista levar o seu trabalho mais além, e noutras obras desta série, como a obra da Nova Zelândia que levou seis anos a desenvolver, o artista coloca outros materiais com que também trabalha a atravessarem a terra.” A escultura de terra chama-se Na Sombra da Árvore e no Nó da Terra e a curadora defende que a podemos ver como um contraponto à enorme nuvem espelhada instalada na Baixa de Chicago, uma das suas obras públicas mais reproduzidas.

Neste momento, há três equipas de engenharia do Porto a desenvolverem cálculos para erguer esta escultura gigante em Serralves a partir dos desenhos de Kapoor: as empresas Adão da Fonseca (responsável pela coordenação dos trabalhos) e Mota-Engil, em colaboração com a Faculdade de Engenharia. “Estão a fazer o projecto de execução da estrutura e das fundações de uma obra de grande escala, um cubo com 34 metros de lado e oito de altura. É como um prédio”, explica Marta Moreira de Almeida, directora-adjunta do museu, enquanto acompanha outra empreitada no parque, a colocação da obra Espelho do Céu.

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Foi preciso vir uma poderosa grua para instalar Espelho do Céu no Jardim do Relógio de Sol PAULO PIMENTA

Foi preciso vir uma poderosa grua para se conseguir pôr a peça com mais de três metros de diâmetro no centro do Jardim do Relógio de Sol, a partir da Alameda dos Liquidâmbares, o caminho que nos leva directamente à Casa de Serralves, a moradia art déco. Este espelho côncavo de aço inoxidável polido, que já foi instalado noutras versões em várias paisagens, “é uma peça forte”, comenta Suzanne Cotter. Vai ficar neste espaço “mais intimista” porque Kapoor quis evitar o bilhete-postal e colocar o espelho em frente à Casa de Serralves e aos seus jardins formais, um dos espaços mais emblemáticos do parque.

Corpo Seccional, construída em PVC vermelho vivo, que vamos encontrar logo à entrada do museu e foi apresentada pela primeira vez em Versalhes em 2015, também é monumental, com sete metros de altura. É um cubo com buracos que nos convida a entrar, mas não sabemos bem o que vamos encontrar quando nos aventuramos neste universo vermelho. “Definitivamente Anish Kapoor fala em querer desorientar as pessoas, em transportar-nos para outro mundo de referências. Estamos no exterior ou no interior? Para que lado devo ir? Como é que chego lá?”. Dentro desta estrutura cúbica, há formas esféricas que foram esticadas e surgem como corolas de flores, criando um estranho ambiente de membranas translúcidas, um espaço visceral e intensamente vermelho.

Se a escala monumental “é claramente importante para Kapoor” – tanto que às vezes nem chegamos a perceber a totalidade do objecto ou o espaço em que foi inserido, como aconteceu com o trabalho apresentado em 2002 na Sala das Turbinas da Tate Modern, em Londres –, a curadora acha que não se pode dizer que os tamanhos gigantes estejam a ficar mais relevantes na obra do autor. A exposição concebida para o Parque de Serralves instala no exterior cinco grandes obras públicas, mas completa-se no interior do museu com mais de 50 maquetas que mostram o laboratório criativo do artista – ou um “arquivo de pensamentos”, como lhe chama Cotter – e ainda outra escultura, um monólito branco, que faz a transição entre as duas escalas.

O puro azul que é infinito

“Cavidade” ou “vazio” são igualmente palavras que definem o trabalho do artista britânico de origem indiana. Suzanne Cotter propõe-nos outras, como “cósmico”, no sentido em que tudo faz parte de um todo maior. E redondo ou curvo? – perguntamos. “Diria mais esférico. Também ‘portal’, como uma entrada em qualquer coisa que nos leva a outro sítio qualquer. ‘Comunhão’, com o mundo sensorial, com alguém, com aquilo que não podemos perceber, mas podemos ter a capacidade de tocar. O Anish está muito interessado em psicanálise. Há algo de primordial e místico que nos motiva.”

Sobre o nada, o vazio, o "void", fala-nos a peça Descida para o Limbo (1992), inspirada no pintor renascentista Andrea Mantegna. Quando entramos num pequeno pavilhão situado na Clareira das Azinheiras, somos surpreendidos por um buraco circular colorido com pigmento azul situado no centro do espaço. “É um campo de percepção pura e o azul torna-se tão intenso que parece negro. Estou a olhar para o nada, para a escuridão, para o sempre? O que é que estou ver? O vazio é o não-espaço, mas é também o espaço infinito”, continua Suzanne Cotter. Anish Kapoor fala muitas vezes de “espaço negativo”, porque o vazio faz parte da forma esculpida, como explica a curadora. Estamos também próximos dos seus não-objectos, aqueles que se tornam invisíveis através do reflexo, como Espelho do Céu, ou fantasmáticos, como Whiteout (2004), que encontramos na sua brancura extrema quando entramos no museu. Entre o azul que se torna negro e um branco que nos impede de ver, qual é a influência da cor na escultura? Estamos novamente a tocar o infinito e a perguntar quais são afinal as fronteiras da escultura.

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