Anish Kapoor fala com os pássaros em Serralves

O Museu de Serralves quer que a exposição de Anish Kapoor simbolize a sua vontade de ter todos os anos um grande artista a trabalhar no parque. Ao Porto, o escultor trouxe um chamador de pássaros e uma onda de terra próxima da Land Art.

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PAULO PIMENTA

Uma onda gigante feita de terra. Um espelho redondo e côncavo que traz o céu para dentro de si. Um paralelipípedo onde entramos para descobrir um buraco que nos faz mergulhar no azul profundo. Um cubo que mostra como podemos esticar um círculo e transformá-lo noutra coisa muito diferente. Uma espiral capaz de chamar pássaros. São estas as cinco obras públicas, algumas com uma escala colossal, que o escultor britânico Anish Kapoor escolheu mostrar no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, numa exposição que abriu esta sexta-feira às 22h e que pretende sinalizar a vontade da instituição de ter um artista fundamental a trabalhar no parque todos os anos. É também a primeira vez que Kapoor é visto em Portugal através de uma grande exposição.

Como ainda não está pronta a monumental onda de terra com 34 metros de comprimento, a encomenda de Serralves para a exposição Anish  Kapoor: Obras, Pensamentos, Experiências que neste momento está nas mãos dos engenheiros para se perceber como pode ser construída no prado do parque, a novidade que esta sexta-feira esperava o artista britânico em Serralves era mesmo como tinha ficado Linguagem das Aves (2018), uma nova ideia no universo escultórico. Este sábado, e a partir de agora todos os domingos até ao final do ano, Pedro Henriques subirá a uma torre em forma de espiral, inspirada no minarete da Grande Mesquita de Samarra, para falar com os pássaros das redondezas.

Dão os dois um grande abraço, o chamador de pássaros e o criador da obra. “Já vi que está situada entre três habitats, o prado, uma floresta fechada e um lago. É um óptimo sítio. Em 15 minutos, detectei oito espécies, como estorninhos-pretos, trepadeiras-comuns e gaios”, explica Pedro Henriques. Ouviu também quatro carriças, o Pavarotti dos pássaros, num parque onde se podem encontrar cerca de 40 espécies nesta altura do ano.

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O chamador de pássaros Pedro Henriques ocupará a torre de Anish Kapoor todos os domingos PAULO PIMENTA

Quase uma hora depois, já junto à torre, Anish Kapoor explica a origem desta peça, depois de termos ouvido os estranhos sons emitidos pelo chamador de pássaros (incluindo um “piu-piu-piu”, um “tchupim-tchupim-tchupim”, e outros irreproduzíveis). “Gosto desta futilidade de chamar pássaros, mas é óbvio que há aqui também uma ideia xamânica de que as espécies são capazes de comunicar umas com as outras.” Quanto ao Iraque e à mesquita, lembra que tem aí origens – é filho de mãe judia iraquiana e de pai hindu; nasceu em Bombaim, passou a adolescência em Israel e aos 19 anos foi estudar para Londres –, mas que a obra está relacionada como um chamador de corvos de que tem memórias da sua infância na Índia. “É fácil associar os pássaros a anjos, a seres que vêm de cima mas também de baixo.”

Estamos quase a poder entrar num desses espaços inferiores, desta vez uma reflexão sobre o limbo. É preciso esperar, porque não podem entrar muitas pessoas de cada vez. O próprio Anish Kapoor e a curadora Suzanne Cotter controlam as entradas. “Tenham cuidado. A peça só vai ficar pronta esta noite. A ideia é entrar na escuridão, mas também estão aqui Dante e a obra de [Andrea] Mantegna em que Cristo desce ao limbo.” Sabemos que a peça contém um buraco no chão com pigmento azul profundo, mas os nossos olhos só vêem negro. “Isto é preto…” – perguntamos a Kapoor. “Não. O azul faz um preto muito melhor do que o preto.” Também se fala do azul de Yves Klein. Alguém pergunta se pode tocar só com um dedo, igualmente incrédulo. “Não!”, responde o artista com um sorriso. “É assustador”, comenta uma jornalista. “Boa. É feito para ser assustador.”

Ele próprio é um espelho da sua crença na conjugação destas cores: t-shirt preta, calças azuis, que parecem pretas, e ténis prateados.

Kapoor e “Mr. Siza”

No final da visita guiada às obras espalhadas pelos 18 hectares do parque, Anish Kapoor falou, claro, de Álvaro Siza, “um dos grandes arquitectos da nossa época”. Em frente ao grande cubo vermelho e preto, que propõe fazer uma reflexão sobre o corpo, sobre “o que está dentro e o que está fora”, “sobre negativo e positivo”, o artista disse que a localização de Corpo Seccional é também uma conversa com "Mr. Siza": “Ele fez um edifício horizontal, que tem verticalidade, mas ela quase nunca é vista. É uma obra que faz espaço de uma forma notável.” Depois, acrescentou que espera ter percebido bem o edifício que Siza desenhou para o Museu de Serralves, porque o contexto é essencial para trazer “significado” aos seus objectos. “A escultura é altamente manipuladora.” E voltamos ao cubo: como é que um buraco se transforma num objecto quando o vemos a partir do interior?

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O interior de Corpo Seccional PAULO PIMENTA

Sobre a encomenda feita por Serralves, a colossal onda que só vamos ver no Outono, Anish Kapoor explicou junto à maqueta do projecto, exibida no interior do museu, que se trata de uma tentativa de enrolar o prado. Tal como outros objectos em que já usou terra, Na Sombra da Árvore e no Nó da Terra é também um proto-objecto, um objecto primordial. Na conferência de imprensa, confirmou ao PÚBLICO que se trata do seu primeiro trabalho que terá inteiramente uma aparência de terra. E é Land Art ou apenas uma escultura feita de terra? – perguntámos-lhe. “Tem obviamente uma relação com a Land Art. A escala, o sítio, a proposta… A Land Art é uma coisa nova e uma coisa velha. Os artistas americanos que foram os primeiros a explorá-la viram-na como uma extensão do que a escultura podia ser e fazer ao ar livre. É algo muito, muito importante.”

Anish Kapoor, um optimista, espera que a obra esteja pronta já em Setembro, mas lembrou que é uma obra verdadeiramente difícil de fazer, porque é “incrivelmente técnica”. “Como é que se faz um objecto que é aparentemente feito de terra, mas que não é feito de terra porque se não não se aguentaria de pé? Isso é parte da razão por que o objecto ainda não está aqui.”

A ansiedade da atribuição

Quase no final, veio a inevitável pergunta sobre as origens indianas de Kapoor e a sua influência na obra do artista, principalmente o lado espiritual. O show de Kapoor não podia terminar sem uma aula sobre os perigos do que achamos exótico, ou não dialogasse ele há anos como o seu amigo Homi K. Bhaba, um dos mais importantes autores dos estudos pós-coloniais contemporâneos. “É complicado. É uma espécie de cliché achar que os indianos são espirituais. Temos de lutar contra a exoticização do cultural. Nunca perguntamos a um artista americano sobre o seu americanismo.”

O seu regresso à Índia, em 1979, é visto como fundamental, numa leitura que fala sobre a importância do uso do pigmento como matéria escultórica. Mas lá está novamente Homi K. Bhaba para nos falar da “angústia da atribuição”. Por que é que a recepção crítica dos artistas que pertencem à diáspora passa sempre por sujeitá-los a “uma biografia cultural peculiar que desfigura a natureza do seu trabalho conceptual”? Kapoor, dizem as biografias sem angústias exóticas, faz parte da “nova escultura britânica” que apareceu há 40 anos.

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