CP diz que veículos históricos que arderam em Vila Real de Santo António eram sucata

Algumas das carruagens estavam referenciadas para irem para o Museu Nacional Ferroviário.

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As peças destinavam-se ao Museu Nacional Ferroviário Nelson Garrido

A insensibilidade que a CP é acusada de ter em relação ao seu património está a deixar os amigos dos caminhos-de-ferro à beira de um ataque de nervos. Depois de a empresa ter querido vender para sucata locomotivas centenárias e carruagens dos anos 30, a administração veio agora afirmar que os sete veículos que arderam em Vila Real de Sto. António no incêndio no passado dia 11 de Junho eram “material descontinuado (sucata) e sem interesse de carácter museológico e comercial”.

“Nada mais falso”, considera António Brancanes, presidente da APAC (Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro). “Perdeu-se material com incontornável interesse histórico e museológico”, disse ao PÚBLICO. “A sua relevância histórica estava até visualmente assumida com a indicação “Museu” aposta no exterior desse material”, explica.

Entre os sete veículos destruídos, encontravam-se carruagens que operaram os comboios tranvias (antiga designação do serviço suburbano) da linha de Cascais até à sua electrificação em 1926. Um outro, datado de 1890, foi uma das primeiras carruagens de boggies (rodados sobre os quais assenta a caixa do veículo) a circular na Península Ibérica.

Pinto Pires, que já foi director do Museu Nacional Ferroviário e é membro da APPI (Associação Portuguesa do Património Industrial), tem também uma opinião diferente da CP. “Considero que pelo menos três ou quatro daqueles veículos eram de primordial importância em termos históricos e dois deles eram mesmo peças únicas que estavam referenciados para irem para o museu”, disse, acrescentando que não compreende a posição da CP.

Este especialista estranha que não tenha havido ainda uma tomada de posição pública sobre o que se passou em Vila Real de Sto. António e alerta para a insegurança em que se encontram outros veículos ferroviários antigos espalhados pelo país, sobretudo no Entroncamento, Livração (Marco de Canavezes), Régua, Tua e Pocinho. “É um grave motivo de preocupação ver que estas reservas [veículos para museu] estão muitas vezes guardadas sem qualquer protecção”, disse ao PÚBLICO.

Esta preocupação é partilhada por António Brancanes. “Uma vez que ainda existe material com interesse histórico espalhado pelo país em circunstâncias semelhantes e igualmente precárias, esperamos que este episódio sirva de alerta para as entidades com responsabilidade na sua salvaguarda e segurança”, diz o presidente da APAC. “Se assim não for, estaremos a hipotecar a possibilidade de gerações futuras poderem vir a conhecer peças relevantes da nossa História Ferroviária de outra forma que não seja através de fotografias ou desenhos”.

O PÚBLICO contactou o Museu Nacional Ferroviário para saber se o material ardido tinha interesse museológico, mas Maria José Teixeira, da direcção, remeteu quaisquer respostas para a CP (cujo presidente, Carlos Gomes Nogueira, é também presidente da Fundação do Museu Nacional Ferroviário).

A dispersão do material histórico, que se encontra espalhado um pouco por todo o país, é uma das preocupações dos defensores daquele património, agravada pelo facto de as duas principais empresas responsáveis pelo museu ferroviário estarem de costas voltadas no que diz respeito à sua preservação. A CP diz que não tem dinheiro para transportar os veículos antigos para o museu e a IP (Infraestruturas de Portugal) costuma cobrar por aquele material estar estacionado nas suas linhas.

Esta falta de sintonia é emblemática nas respostas que as duas empresas deram ao PÚBLICO sobre as causas e responsabilidade do incêndio em Vila Real de Sto. António. Fonte oficial da transportadora pública diz que a empresa desconhece qual a causa do incêndio, mas lembra que “o imóvel, alvo do sinistro, não pertence a qualquer empresa do grupo CP”. Já a IP faz questão de notar que “o espaço em questão encontra-se numa estação guarnecida, na proximidade das oficinas do material circulante do operador CP, que tem segurança contratada pela EMEF [subsidiária da CP]”.

O PÚBLICO procurou saber junto da CP por que motivo material considerado sucata tinha afixado a placa “Museu” e se encontrava guardado num armazém, mas não obteve resposta.

O que ardeu em Vila Real de Sto. António

* BT 480 - Carruagem de três eixos, de um lote de 36 compradas à Dietrich & Cª., para os tranvia de Cascais

* C7f 2235 – Carruagem da Companhia de Caminhos de Ferro da Beira Alta, construída pelas Oficinas da Figueira da Foz

* A7yf 3706 – Carruagem fabricada pela Van der Zyper & Charlier, de 1890, da Companhia dos Caminhos de Ferro de Sul e Sueste

* CT 390 – Carruagem de dois eixos de uma classe que serviu os tranvia um pouco por toda a rede

* Vagão Zk 4097 – Fazia parte de um lote de vagões diversos que serviram no abastecimento de água e fuel um pouco por toda a rede

* Grua 30001 – Vagão-grua destinado a mover peças pesadas do caminho-de-ferro

* Guindastre rolante 26 94 94 27 001 – Esteve durante muitos anos numa das vias da placa giratória de Vila Real de Sto. António até ser recolhido para o seu interior

 

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