Um Portugal-França jogado no teatro

Numa parceria com o Théâtre de la Tête Noire, o Teatromosca estreia na quarta-feira, no Cacém, Kif-Kif. Um Portugal-França amigável, disputado por 22 jovens actores em cima do palco.

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O dia mais triste da vida de Félix foi aquele em que Portugal venceu o Campeonato da Europa de futebol, com um golo de Éder, o jogador a quem todos torciam o nariz, aos dezoito minutos e vinte e quatro segundos do prolongamento. Enquanto Portugal e França faziam do Estádio de França um campo de batalha nos limites aceites pelo desporto, Félix acompanhava os últimos momentos da vida do pai – ao lado da sua cama de hospital; depois numa sala de espera, onde os corpos dos jogadores na televisão não passavam de sombras, e ao olhar o ecrã via os atletas “correr e cair, e pensava se era mais difícil lutar de pé ou lutar deitado, como é que se defende uma bola que são muitas, e que talvez sejam cada vez mais”.

É uma das histórias que compõe Kif-Kif. “Kif” é um vocábulo árabe cuja significação aponta para “igual”. E é isso que Kif-Kif quer ser: um jogo de teatro, com 11 intérpretes de cada lado, metade portuguesa, metade francesa, num encontro entre as companhias Teatromosca e Théâtre de la Tête Noire, ligando Cacém e Orléans uma troca de experiências e narrativas cruzadas, escritas a partir desse mote futebolístico. Diz Pedro Alves, do Teatromosca, que uma das ideias passava por desarmar essa crença generalizada de que as gentes do teatro não são dadas ao desporto e ao futebol em particular.

Numa primeira leitura encenada de Kif-Kif em França – a estreia do espectáculo acontece esta sexta-feira, em Orléans, estando as primeiras apresentações portuguesas marcadas para 4 e 6 de Julho, no Auditório Municipal António Silva (Cacém) e no Cine-teatro Avenida (Castelo Branco), respectivamente –, os quatro actores profissionais do projecto (dois de cada nacionalidade) apresentaram excertos dos textos de Jorge Palinhos e Leïla Anis, e logo “houve uma espectadora indignada” que se manifestou contra as duas companhias se encontrarem a preparar um espectáculo com jovens (os 18 actores não-profissionais) a partir do universo do futebol. Argumentava a senhora que “o futebol é o capitalismo elevado ao máximo, é selvagem, é o diabo, é horroroso e não deve ser discutido com os jovens”. “É engraçado porque o futebol sempre foi a minha maior paixão, maior até do que o teatro, e jogar futebol sempre foi algo extraordinário”, confessa Pedro Alves ao Ípsilon.

E foi o futebol, no dia de uma partida entre FC Porto e Lille (num festival que decorria nesta cidade francesa), a aproximar Alves do director do Tête Noire, Patrice Douchet. A partir desse momento, as cumplicidades passaram para os palcos e os dois foram insistindo em colaborações que se materializaram tanto em intercâmbios como em co-produções. Mas Kif-Kif é a primeira criação conjunta de raiz, pensada para actores e público juvenil à boleia do 18º aniversário da companhia portuguesa, pretexto para reflectir sobre o que significa atingir a maioridade.

Com o primeiro encontro de trabalho a ter lugar em plena ressaca da vitória portuguesa no Europeu, os dois encenadores pensaram em convocar para o teatro o lado performativo do futebol enquanto espectáculo e não todo o carnaval do negócio multimilionário criado em torno de um simples jogo em que 22 pessoas correm atrás de uma bola. Até porque, lembra Douchet, “as regras e os valores do desporto e as que vigoram nos teatros são por vezes muito próximas: abnegação, sentido de colectivo, respeito pelos companheiros, o acto público…” Esquecendo a violência nos estádios, as contratações por montantes obscenos, o marketing ciclópico ou a dimensão puramente mercantilista do desporto, Alves e Douchet quiseram inspirar-se em momentos como o da “imagem icónica, lindíssima, da traça a pousar nas pestanas do Ronaldo” ou essoutro momento “quase anedótico, mas extremamente belo, da criança portuguesa que confortou o adepto francês em lágrimas”.

“Interessava-nos que os jovens tivessem oportunidade de brincar e de jogar, mesmo quando no texto analisamos questões relacionadas com a iconografia, os deuses do futebol, a imagem dos jogadores como personagens que ditam a moda e que marcam os passos que damos, até quando se tenta destruir o universo másculo que se associa tantas vezes ao futebol”, contextualiza Pedro Alves. Douchet acrescenta que “Leïla queria servir-se do desporto para falar de identidade, da passagem de fronteiras, da aceitação do outro”, livre de usar tudo quanto quisesse enxertar no texto, desde que respeitasse a ideia de se dirigir a actores e público jovens.

Jogo amigável

Seguindo um método copiado do mundo do futebol, as equipas treinaram à parte, realizaram os seus estágios autónomos antes da final, desenvolveram tácticas diferentes para o jogo e tiveram a possibilidade de se estudarem mutuamente, mas sem capacidade efectiva de interferir no trabalho do outro. Significa isto que os dois processos criativos, desenvolvidos com autores e actores locais, deram forma a um texto português e outro francês, cujos encaixe e montagem finais somente acontecem nos dias imediatamente antes da estreia em Orléans. Sem procurar situações de confronto entre as duas partes, Pedro Alves reclama um modelo mais semelhante ao daqueles “jogos amigáveis entre a equipa do Luís Figo e a equipa do Romário, em que no final metem o guarda-redes a ponta-de-lança e depois deixam o Usain Bolt fazer um sprint para marcar um golo de calcanhar”.

As diferenças fazem-se sentir também na natureza dos grupos de trabalho. Se no caso francês os jovens são provenientes de contextos bastante diferentes, os portugueses já se conheciam entre si na grande maioria – ficaram nove depois de peneirado o grupo de 15 candidatos, atraídos por um espectáculo sobre futebol ou até pela oportunidade de comer um kebab em França (no Teatromosca ainda se questionam o que há de tão especial nos kebabs franceses). Essa relação prévia levou, acredita o director do Teatromosca, a que os três meses de trabalho conjunto produzissem tais efeitos que as imaginadas partes corais (incluídas na primeira versão) para os actores não-profissionais acabassem reescritas por Jorge Palinhos a fim de lhes oferecer um protagonismo cada vez maior.

Os relvados de futebol, como é fácil de adivinhar, não demoram a ser cenário para um quadro bastante mais alargado. Para Douchet, além da componente artística, Kif-Kif proporcionará “aos jovens destes bairros a possibilidade de descobrirem o que significa ter 16 ou 17 anos em França e em Portugal”. Mas o palco é também uma caixa de ressonância que permitirá trazer à superfície as histórias destes jovens, a coberto de uma situação mais protegida lançada pela ficção teatral. Como é o caso da história de Félix, deixada a pairar na absoluta incerteza quanto à sua veracidade. Também ele não esquecerá onde estava no instante em que Éder puxou o pé atrás e chutou.

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