Uma odisseia particular

Memória, viagem e ensaio num livro que convoca a disponibilidade e a emoção do viajante. Uma obra intensa de um dos maiores classicistas contemporâneos.

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O livro de Daniel Mendelsohn aproxima a biografia pessoal da análise de uma obra universal: Odisseia, de Homero ULF ANDERSEN/ GETTY IMAGES

O mais recente livro do classicista Daniel Mendelsohn é em simultâneo um volume de memórias, um livro de viagens e um ensaio crítico. E tem outro livro como centro, a Odisseia, que, entre outras coisas, “é a viagem de um homem através da vida, do nascimento até à morte”. É desse pressuposto que formula as perguntas que o vão guiar nesta narrativa da sua epopeia pessoal. “Como se chega lá? Como é a viagem? Como se conta a respectiva história?”. Em síntese, a resposta pode ser: “dando muitas voltas.”

No caso da Odisseia, tudo começa quando um filho vai à procura do pai ausente. Em Uma Odisseia, a viagem inaugura-se quando um pai pede ao filho para frequentar o seu seminário sobre Homero. O filho disse-lhe que sim e Jay Mendelsohn, cientista reformado de 81 anos, passou a fazer uma vez por semana, ao longo de 16 semanas, “a viagem entre a casa nos subúrbios de Long Island” e o “campus à beira-rio” de Bart, o colégio onde o filho Daniel ensina, em Nova Iorque.

“Às dez e dez, todas as sextas-feiras pela manhã, iria sentar-se entre os caloiros que estavam matriculados no curso, jovens de 17 ou 18 anos que nem sequer tinham um quarto da sua idade, e participar na discussão desse velho poema, uma epopeia acerca de longas viagens e longos casamentos, e do que significa ansiar pelo lar”.  

Narrado na primeira pessoa, e através de “espirais associativas” — recurso narrativo clássico que merece a atenção do autor — o livro de Daniel Mendelsohn constrói-se a partir desse momento, o proémio, para aplicar outra designação clássica, e descreve a relação entre pai e filho no tempo e no espaço; relação feita, como quase todas as ligações pai-filho, de amor e culpa, silêncios, voltas, tensão, incompreensão, admiração mútua, interditos, e a hipótese de um regresso a casa que pode ser tão apaziguador quanto incómodo porque nunca se regressa igual e se anda sempre em busca de identidade. Ou seja, da resposta à pergunta: quem sou eu agora e quantas personalidades esse eu pode ter ao logo de uma vida? Isso ao mesmo tempo em que ecoa outra pergunta: quem foi Ulisses? Um “verdadeiro” herói ou nem tanto, por ser “um mentiroso” que “enganou a mulher”, a paciente e fiel Penélope que resistiu a todas as investidas de pretendentes ao longo dos vinte anos da ausência do marido, e ele, apesar da insistência no regresso, se envolveu com Calipso?

A ida de Jay para o seminário sobre a Odisseia é o mote para a reaproximação entre filho e pai e o reatar de outra odisseia, pessoal e que também passa a ser espacial. Jay instala-se no apartamento de Daniel nos dias em que tem de estar em Nova Iorque e os dois engendram uma viagem para refazer o roteiro de Ulisses. É um modelo turístico de que não são adeptos, mas sobre o qual concordam como possibilidade não apenas de estarem juntos numa jornada simbólica mas também para poderem visitar lugares que de outra forma não conheceriam. São dez dias, tempo que aos olhos de Daniel simbolizariam os dez anos da viagem de regresso de Ulisses.

É outra viagem espacial e temporal, mais limitada numa e outra esfera, uma odisseia — essa palavra tão global — muito partícular. Global não apenas pela dimensão da obra de Homero, mas pelo significado que tem em língua inglesa. Daniel precisa: “A única palavra em língua inglesa que combina todas as várias ressonâncias que, de diferentes modos, fazem parte de voyage, journey e travel — a distância, mas também o tempo, mas também a emoção, a dificuldade e o perigo — não vem do latim, mas do grego. Essa palavra é odyssey.” Nela estão sugeridas as dimensões espacial e temporal e ainda outra essencial à viagem: a emoção, “elemento mágico”, observa o escritor.

É de tudo isto que se alimenta Daniel Mendelsohn num livro que aproxima a biografia pessoal da análise de uma obra universal. O conjunto é uma brilhante composição entre quotidiano e erudição, onde, neste caso, nunca se notam posições de bicos de pé. Pelo contrário. Tendo como padrão a figura do pai, um homem que se tornara leitor numa família de antepassados pouco livrescos que o acusava, por exemplo, de não valorizar a dimensão estética da matemática, Daniel escreve com a simplicidade só acessível aos sábios. Desmonta o poema de Homero, numa análise tão brilhante como acessível. Além disso, a substância dessa argumentação é o dia a dia de uma família, a sua, igual a outra qualquer. Como seria a de Ulisses. Ulisses era marido, pai e filho, um herói imperfeito como terá sugerido Jay, e por isso humano. São ingredientes transpostos para a normalidade também imperfeita de uma banal família contemporânea.

Estamos, como em qualquer viagem, a andar aos círculos, em movimento, à procura de um retorno. Na viagem que fizeram juntos, Daniel e Jay não chegaram a Ítaca. A explicação dada no livro prende-se com um detalhe burocrático, mas o argumento ganha aqui simbolismo e parece  encaixar, em quem sofre de contaminações literárias, na pergunta-enigma que Jay dirige ao filho. “Como (...) é que se podem percorrer grandes distâncias sem que se chegue a lado nenhum?” Daniel responde logo no início, antes de aprofundar a história de amor entre ele e o seu pai: “Se uma pessoa andar às voltas”.

Este é um livro para ler de lápis na mão, apetece sublinhar cada passagem. E convém ter a memória bem desperta para as experiências pessoais, as de cada leitor. Estamos também perante uma odisseia universal.

 

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