Dever (e prazer) de leitora: na morte de Philip Roth

Pergunto-me se, sem dar visibilidade às vozes dos que lêem sem compromisso profissional, não será mais difícil fazer novos leitores ou leitores mais persistentes.

Philip Roth morreu no mês passado e a imprensa portuguesa não deu nenhum espaço a comentários dos que são apenas-leitores, dos que cresceram e envelheceram a ler Roth enquanto se dedicavam a profissões desligadas da crítica literária. Dos que durante 40 anos foram esperando cada novo livro de Roth, viram as suas fases sucederem-se, releram os seus livros em épocas diferentes da vida, os discutiram e ofereceram. A voz desses leitores — mes semblables, mes fréres — não teve voz na imprensa portuguesa. É pena, porque a longa carreira do escritor ofereceu-nos a companhia de muita gente que foi vivendo connosco — comigo, certamente.

Gente como o adolescente Portnoy, que conheci quando a minha adolescência tinha acabado há pouco; gente como o Zuckerman a envelhecer, que me foi preparando para as irritações da minha progressiva falta de juventude; gente como o “Sueco” Levov ou o Ira Ringold, que tiveram filhas ou enteadas quando eu fui mãe, nos anos 1990. Pergunto-me se, sem dar visibilidade às vozes dos que lêem sem compromisso profissional, não será mais difícil fazer novos leitores ou leitores mais persistentes. Se essas vozes nunca forem tornadas públicas ficam a faltar aos escritores partes integrantes das razões porque escrevem.

Por isso este texto: para escolher um livro e, em dever (e prazer) de leitora, restituir ao debate o que ele me disse. O livro é a Pastoral Americana. Publicado no ano que em nasceu a minha filha, li-o com gosto na altura, mas a personagem daquela adolescente revoltada que acaba a viver na mais radical esqualidez deixou-me fria; na verdade, na altura todo o livro me pareceu uma corda demasiado esticada, uma visão exagerada dos males da condição americana, por todos identificada como uma permanente preocupação de Roth. No Verão passado, já a minha filha tinha 20 anos, reli-o. Não me deixou fria, nem me pareceu uma corda demasiado esticada. Admirei e rendi-me à forma como Roth nos conduz de capítulo em capítulo — em espirais cada vez mais aprofundadas — a encarar duas evidências.

A primeira é a evidência de que a acção e a decisão deixam sempre um resíduo de inexplicável. Resíduo que permanece para quem esteve envolvido na acção (Merry, a filha do “Sueco” Levov, envolvida na colocação de uma bomba assassina de protesto pela guerra do Vietname) e para quem foi afectado pela acção e precisava de a compreender (o “Sueco”, a sua família). E que é reforçado pela dúvida que Roth deixa que permaneça sobre a forma específica do envolvimento de Merry na bomba — tornando assim o livro um testemunho de que nem à acção directa é fácil atribuir um actor ou decisor inequívoco, circunscrito, isolado.

Ademais, a impossibilidade de explicações integrais fora já pré-sugerida no livro pela impossibilidade de entendimento da gaguez de Merry, uma forma mais benigna — ainda que também trágica — de pôr em cena o inexplicável. A Pastoral Americana mostra, então, um pouco mais profundamente a cada capítulo, a forma como a voz interior do “Sueco” Levov se esforça por entender, primeiro a gaguez, depois a bomba contra a América — e com ela a própria América: um lugar em transformação, embora para ele, “Sueco”, um lugar estável na oferta da possibilidade de uma identidade “para além de apenas judeu”. Apresenta a busca do “Sueco” por explicações pessoais, o seu questionamento das memórias do passado e do que poderia ter sido diferente e também a sua busca por razões históricas e sociais. E, ao mesmo tempo, incita-nos a aceitar que em qualquer tempo e em qualquer América a impossibilidade da explicação integral da acção (própria e alheia) é uma condição permanente, embora com o tempo histórico mudem os instrumentos de auto-análise e análise social de que dispomos para a busca, e os lugares onde procuramos.

A segunda evidência do livro, mais comum na literatura, é a de que o crescimento dos filhos traz um crescente de inexplicável ou, talvez melhor, uma expansão de Alteridade e das dimensões onde esta é mais impenetrável. Na Pastoral Americana essas duas reservas de resistência ao entendimento total entrelaçam-se de uma forma que dá a ambas a dimensão radical da tragédia, quando na vida quotidiana elas são factos correntes — ainda que frequentemente dolorosos.

É visível, também, nesta segunda evidência, que o livro assenta numa experiência que partilho com o “Sueco” Levov: a parentalidade. A busca do “Sueco” é de um pai, e, como mãe, reconheço-me nela. Mas, também como mãe, o livro recorda-me que a experiência de pai, por mais reconhecível que me seja, não esgota a experiência da parentalidade. No entanto, sei pouco de Dawn, a mulher do “Sueco”, mãe de Merry, e das suas buscas em relação à filha. E, na verdade, depois de 30 anos a admirar e ler fielmente Roth, todas as suas personagens com dimensão e espessura que tenho na memória são masculinas.

O livro recorda-me também, assim, que embora nenhuma condição humana nos seja irreconhecível ou estranha, pois há entre nós uma humanidade comum, também nenhuma condição humana existe fora de certas circunstâncias — e por isso, para nos ajudar a entendê-la ou a questioná-la melhor, precisamos de mais histórias escritas de mais perspectivas sobre mais actores/as e, logo, de mais escritores/as. Ainda bem para nós, leitores/as.

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