Ziguezagues dos políticos ou quando a memória atrapalha

A cambalhota de Paulo Portas, o jornalista, que virou político? Está lá. A passagem de Durão Barroso, o chairman da Goldman Sachs, pela frente estudantil do MRPP? Está lá. As críticas de Marcelo ao “aparecimento em excesso” também não foram esquecidas pelo autor. Os ziguezagues dos políticos não cabem todos neste texto.

Carro familiar, veículo de luxo
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Quando Marcelo partilhava o gaurda-chuva com Durão Barroso PAULO CARRIÇO
Marcelo Rebelo de Sousa
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A icónica imagem do guarda-chuva para dois, em Paris daniel rocha

No prefácio, como é suposto, Ferreira Fernandes diz logo ao que o livro vem. “Há uma frase famosa, muito citada, embora de forma bastante vaga: ‘Quem é bom comunista aos 20 anos, é social-democrata aos 40’.” Terá sido dita pelo alemão Willy Brant, como quem pega no título da canção de José Mário Branco — Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades — para lhe dar uma carga (ainda mais) política.

Foi sobre estados de alma que Pedro Prostes de Fonseca escreveu no livro Ziguezagues na Política, lançado recentemente pela editora Desassossego. “Como os políticos portugueses foram mudando o discurso desde a revolução e Abril”, promete o autor. “Dar uma volta de 360 graus, neste caso, são contas bem feitas e até definem uma mudança radical. É raro quem regressa aonde tinha começado. Nem é preciso ser cientista político para nos darmos conta dessa inevitabilidade de mudar as opiniões e as palavras”, acrescenta o prefaciador.

Ao PÚBLICO, o jornalista Pedro Prostes de Fonseca, que passou pela Agência Lusa, pela Sábado, pela Meios & Publicidade, pelo Expresso e pelo Sol, explica que o seu trabalho de pesquisa incidiu, em especial, sobre entrevistas dadas pelos políticos desde a revolução” e conta que havia seguramente material para muito mais “se tivesse tido acesso a intervenções que escaparam a notícias de jornal”.

O exercício de confrontar as diversas personagens com a evolução do seu pensamento não privilegia a esquerda nem a direita. Tão depressa o livro se debruça sobre a passagem de Zita Seabra pelo PCP e pelo PSD, como foca a atenção em José Miguel Júdice, ex-PSD, que o autor elege como um dos políticos mais dados a reverter a opinião. No extremo oposto, dos mais inflexíveis, não há surpresas: “Aníbal Cavaco Silva”, responde, assumindo que ainda assim houve algumas revelações durante a pesquisa. “Tive várias surpresas, especialmente no que respeita a personalidades que hoje são vistas pela sociedade com o maior respeito, como sejam os casos de Álvaro Cunhal ou Ramalho Eanes.”

Nem que Cristo desça à Terra

O livro podia começar pelos ziguezagues mais relevantes ou pelos mais divertidos, mas segue uma ordem cronológica — o primeiro capítulo chama-se “Quando todos eram revolucionários” — que neste texto se neglicencia.

Aqui, no início, aparece Marcelo Rebelo de Sousa, figura do mais central que existe nos dias de hoje. E se há uma frase a destacar, ela está logo numa das badanas da obra. “Não há dúvida de que o aparecimento em excesso, a intervenção em excesso acabam por revelar-se contraproducentes não só para qualquer governante como para o órgão de que é titular.” A citação tem mais de 36 anos (Diário de Lisboa, 11 de Março de 1982) e dificilmente se atribuiria a Marcelo Rebelo de Sousa nos dias que correm. Mas foi o então secretário de Estado da Presidência, actualmente criticado pelo excesso de protagonismo (sem o nomear, Cavaco Silva acusou-o de “verborreia frenética”), que a proferiu.

Não terá sido por acaso que Pedro Passos Coelho, em 2014, deu a entender que Marcelo Rebelo de Sousa seria um “catavento” ou que Manuel Maria Carrilho o apelidou de “gelatina política”. Já Paulo Portas preferiu dizer que Marcelo é como o Lucky Luke: “Intriga mais depressa que a sua própria sombra.” Para esta fama contribuíram sucessivos episódios, dos quais a famosa frase “nem que Cristo desça à Terra” é um exemplo.

Foi em Fevereiro de 1996. Questionado sobre a possibilidade de vir a concorrer à liderança do PSD, o actual Presidente da República respondeu, sem hesitações: “Nem pensar, nem pensar. Não, não e não! Em caso algum. Nem que Cristo desça à Terra.” Em finais de Março, porém, já liderava o partido.

Sobre António Guterres, Marcelo passou de achar que o seu calcanhar de Aquiles era a “falta de sentido de autoridade de Estado” (1996) para dizer que ele “é a figura mais brilhante” da sua geração e o primeiro-ministro “mais-amado de Portugal” (2016).

Mas, em abono da verdade, diga-se que muitos dos que lhe apontam a incoerência também não pensaram sempre da mesma forma. Um exemplo: António Costa dividiu um chapéu de chuva com Marcelo em Paris, há dois anos, mas em 1997 achava que Marcelo Rebelo de Sousa estava “constituído num verdadeiro mercado abastecedor da intriga política”. Hoje, se o pensa, pelo menos não o diz.

Mudanças de outros tempos

Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Cavaco Silva ou António Guterres são figuras em que o autor se detém ao longo de muitas páginas. Sá Carneiro é lembrado, entre outros episódios, por se ter afastado do PPD-PSD, passando a considerar-se “um político retirado” em Abril de 1978, para meses depois se candidatar à presidência do partido. Soares surge referido (e também como protagonista) em muitas histórias políticas, em especial no pós-revolução. Cavaco Silva conseguiu apoiar Soares na sua recandidatura e viver, com ele, momentos de ruptura. Ainda assim é, para o autor, um exemplo de coerência.

Cunhal, por seu turno, é descrito como a face da constância do PCP, partido que em 1977, como agora, já achava que seria uma “catástrofe” a entrada de Portugal no Mercado Comum. Ou que em 1986, como hoje, já defendia no seu programa a saída de Portugal da NATO. No entanto, também foi apanhado a dizer uma coisa e o seu contrário.

“Consideramos Mário Soares como um candidato da direita. Não seria em Belém menos perigoso do que Freitas do amaral. Está pois excluído que em qualquer caso tenha o apoio ou os votos do PCP”, disse o líder comunista em Maio de 1985, em plena disputa presidencial. Já em Janeiro de 1986, afirmava. “[Os comunistas] Não podem ficar de braços cruzados ante a grave e instante ameaça para a democracia que decorre da eventual eleição de Freitas do Amaral (…) se os trabalhadores e democratas não viessem a unir-se, embora apenas de forma conjuntural, para o derrotar na segunda volta.” É o engolir de sapo mais célebre da democracia portuguesa.

E sobre António Guterres o que pode dizer-se é que deu origem a grandes guinadas, não exactamente suas. Pedro Prostes de Fonseca recorda, sem juízos de valor, alguns dos que lhe chegavam “a roupa ao pêlo”, como descreve nas páginas 78 e 79.

“Guterres foi uma das pessoas que pior fizeram a Portugal nos últimos tempos e fugiu sempre das consequências do que fez”, dizia Pacheco Pereira em 2002, depois de Guterres se demitir por considerar ser seu “dever evitar o pântano político”. Vinte anos antes, João Cravinho achava-o “francamente abaixo das expectativas” e Cavaco Silva acusava-o, em 1993, de “excesso de demagogia”. Já Durão Barroso era peremptório: “Lamento dizer isto, mas não acredito nada na sinceridade de António Guterres. Ele é 99% representação” (1995).  Em 2000, Marques Mendes defendia que o socialista tinha introduzido “uma cultura de laxismo” em Portugal.

“Num exercício de veja-como-tudo-muda-depressa-na-política”, escreve o autor de Ziguezagues na Política, leiam-se as opiniões sobre o mesmo António Guterres quando esteve em causa a sua candidatura a secretário-geral da ONU. Aí, algures entre 2016 e 2017, Cavaco já achava: “Guterres muito prestigiará Portugal.” E Durão salientava “o equilíbrio, a moderação, a recusa dos extremos, a procura do consenso e o gosto pelo compromisso” como qualidades do antigo primeiro-ministro. Para Marques Mendes, ele passou a ter “o mérito e qualidade suficiente para fazer um bom lugar”. No fundo, é como diz a canção de José Mário Branco.

A cor também muda

O livro ainda tem todo um capítulo dedicado aos políticos que mudaram de cor — vale a pena ver o quadro com a lista das oscilações, que ocupa quatro páginas e vai do A (António Vitorino) ao Z (Zita Seabra) — e outro com os salta-pocinhas autárquicos.

No total, são 221 páginas, incluindo um apêndice com a “cronologia dos principais momentos políticos que Portugal atravessou desde a revolução” até à vitória de Rui Rio sobre Pedro Santana Lopes nas directas de Janeiro de 2018. Há ainda uma lista de 44 fontes na imprensa, da qual constam muito mais órgãos de comunicação social do que aqueles que hoje existem. A Capital, Diário de Lisboa, O Jornal, Semanário, O Século, O Diário ou O Independente são apenas alguns exemplos de jornais que obrigaram o autor a passar seis meses no centro de documentação da Agência Lusa, para consulta.

“Sem ter pretensões acintosas (quem nunca mudou de opinião que atire a primeira pedra), este livro pretende evidenciar que na política as trajectórias são, por ofício, sinuosas com vista a atingir um fim. Seja o poder (ou a aproximação a esse desígnio) ou um lugar ao sol”, explica Pedro Prostes de Fonseca no epílogo. “Um ‘bailado’, como um dia chamou Maria de Lourdes Pintasilgo à actividade política, que nem todos sabem praticar.”

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