Zita Seabra No PCP, antes e depois

Iria assim começar a viver os piores anos da minha vida: os anos em que tinha por tarefa tomar conta de uma casa do Partido e que só terminariam quando passasse ao trabalho de organização, o que aconteceu quando fui para Lisboa controlar a UEC. (...)Depois de instalados, conheci o controleiro de Albano Nunes. Era, afinal, uma mulher (na altura eram muito poucas na clandestinidade em trabalho de organização), Georgette Ferreira. No PCP as mulheres eram raras e foram, durante muitos anos, visivelmente discriminadas. A desculpa ou a razão era lógica e evidente: as casas clandestinas eram mais bem defendidas por um casal que apresentasse um ar normal. Aprendi rapidamente, como regra conspirativa, que dois camaradas com trabalho de organização não podiam viver juntos, por razões evidentes de segurança; além do mais, era lógico que a mulher ficasse em casa enquanto o marido andava por fora. A razão para chamar às mulheres companheiras e não camaradas era também simples - e ainda hoje escrevo sobre isso com alguma irritação: as mulheres não eram sequer camaradas, explicando-se oficialmente que muitas delas não eram militantes, estavam sim na clandestinidade porque tinham seguido o companheiro sem saber no que se iam meter. Era uma explicação tanto mais ridícula quanto se esperava que suportassem a tortura e anos de prisão, exigindo-se-lhes que se aguentassem frente à polícia, com plena consciência de que, no caso de falarem, seriam abandonadas pelos companheiros. Eram-lhes aliás pedidos sacrifícios em tudo idênticos aos dos camaradas, acrescendo-lhes o isolamento extremo (eu tive os dois estatutos, e nada se compara à vida isolada das "companheiras" das casas do Partido) e a modéstia - porque nunca saíram das prisões como heroínas, mas sempre na humildade do seu silêncio (...).
Georgette Ferreira era originária de Vila Franca de Xira, e uma das três irmãs Ferreira que fizeram história no PCP. Era uma senhora: vestia impecavelmente e com muito gosto, usava sempre bijutaria muito bonita e os sapatos condiziam com as malas. Era radicalmente diferente, direi mesmo o oposto da irmã, Sofia Ferreira. (...) Tinha um feitio terrível, como pude verificar rapidamente, e era de uma dureza sem contemplações, mas adorava demonstrar uma educação e maneiras diferentes da sua classe de origem. Por exemplo, enquanto me controlou, levava-me sempre um presentinho quando ia lá a casa, um pacote de bolachas ou até uma flor. Gostava de interromper as reuniões e tomar o seu chá com as bolachas que levava, trazendo na carteira uma pequena lamparina a álcool e um pequeno púcaro, onde fazia chá sempre que reunia num sítio onde não lho pudessem fazer. Quando fui para o trabalho de organização, imitei-a e arranjei também uma lamparina portátil e um púcaro para fazer chá em todo o lado. O gosto pelo chá ficou-me para a vida. (...)
A camarada Georgette não me deixava assistir às reuniões, nem tão-pouco ao ponto político que devia fazer parte da minha educação e formação revolucionária, algo que me humilhava imenso. Ao contrário, Sérgio Vilarigues, camarada do Secretariado do Comité Central, mais responsável que a Georgette, sempre que vinha, de dois em dois meses ou mais, chamava-me para as reuniões e deixava-me assistir, excepto no período da discussão do ponto da ordem de trabalhos intitulado "Organização" e que dizia respeito a questões que envolviam pessoas. Para minha grande alegria, o Sérgio até me pedia opinião sobre o que se discutia, e por isso eu adorava as reuniões em que ele participava.
Instalada na minha casa, tomei conta do meu primeiro trabalho, e de algumas tarefas. Antes de mais tinha de aprender a "defender" a casa. Dar-lhe um ar normal, para não levantar qualquer tipo de suspeita na vizinhança. Ir às compras (naturalmente, à mercearia da terra), não sair muito, conversar com ar simpático, mas não dar muita confiança. (...)
Vivia com a mesada que recebia e que mal dava para comer, e com a qual tinha de pagar todas as despesas da casa. Aprendi a cozinhar com pouquíssimos meios e o mais barato possível. Sempre que vinha a Georgette cozinhava dieta. Quando vinha o Vilarigues, comia-se um pouco melhor. O luxo era sempre feijoada com tripas à moda do Porto, cuja receita recortara de um jornal.
Perdi os hábitos todos que trazia: tomávamos banho uma vez por semana, e nesta casa tínhamos a sorte de ter água quente: noutras era com um púcaro e água aquecida no fogão. Em casa eu tinha empregada interna, lavadeira, costureira e mulher-a-dias. Tive de aprender a cozinhar e a lavar a roupa, eu, que nem sabia o que era um tanque.

A ruptura

Após a derrota [nas eleições de 1987] fui à reunião do Comité Central do PCP para análise dos resultados eleitorais, onde fiz uma intervenção, a primeira da reunião, discordando absolutamente da orientação que tínhamos seguido. Apenas uma voz me apoiou: a de Raimundo Narciso. Voltei para casa, não só à reclusão imposta pelo médico como para cuidar do filho bebé. Decidi começar a ler mais livros sobre a dissidência soviética. Tinha a triste sensação de que devia transpor a barreira de informação que tinha imposto a mim própria e conhecer o outro lado, ler o que nós, comunistas, não líamos por se tratar de mera propaganda dos inimigos do Partido.
Cunhal inquietou-se e mandou a minha casa o Sérgio Vilarigues e o Domingos Abrantes (os mesmos que antes tinham "aprovado" o meu marido). Passaram lá uma tarde a discutir a linha do PCP e as minhas opiniões. Não sei o que relataram, nunca soube, mas acho que não saíram de lá sossegados. (...)
Quando voltei ao trabalho, depois de quase um ano afastada pelo parto e pela doença, já não era a mesma. Tinha mudado e custavam-me cada vez mais as reuniões da Comissão Política e as discussões constantes com Cunhal sobre a linha do Partido. Um dia, discutimos os dois muito seriamente. Começámos pela URSS: tinha acabado de sair um livro revolucionário, A Revolução na Economia Soviética: a Perestroika, do economista Abel Aganbenguian, editado em Portugal pela Europa-América, e eu levei-lho. O livro explicava que, ou a URSS mudava, ou perdia o carro da História. Acabado de chegar de lá, Cunhal vinha escandalizado com o que vira e ouvira. Penso que se deve ter encontrado com algum dos seus fiéis amigos, Ponomariov ou outro parecido, porque tinha mudado radicalmente de atitude. Dizia já nessa altura que se corria o risco de pôr em causa a própria existência da URSS. Terminámos a discussão com a análise da linha política do Partido. Pela primeira vez disse-lhe directamente que o PCP tinha de abandonar de uma vez por todas o processo revolucionário em curso e o caminho armado para o socialismo, que essa linha política não fazia o mínimo sentido no Portugal democrático, que tínhamos perdido toda a influência nos intelectuais por causa disso e que o Partido devia entrar na plena legalidade e na via eleitoral e democrática para o socialismo, e não na via subversiva.
Cunhal ficou furioso e tivemos uma terrível discussão. Disse que estava a voltar à minha classe de origem, que tinha perdido a perspectiva revolucionária, que o problema era meu e não do Partido, que andava com más companhias, que os capitulacionismos começavam assim, que me transformara numa contra-revolucionária.
Ainda abalada pelos termos da discussão, fui trabalhar. Tinha de ir ao Pavilhão dos Desportos alugá-lo, já não sei para quê. Saí, fui ao pavilhão e quando voltei dirigi-me ao meu gabinete no 6.º andar em frente ao do Camarada: só que o camarada da segurança não me abriu a porta e disse-me que já não trabalhava naquele andar, mas num outro. Enquanto fui ao Pavilhão, Cunhal mandou a segurança enfiar as minhas coisas em enormes sacos de plástico, tudo a monte. (...)
Uns dias depois dessa discussão (...) [Cunhal] decidiu convocar uma reunião de funcionários, coisa nunca vista, a fim de prestar alguns esclarecimentos e de me isolar, de me apontar o dedo. Juntaram-se todos os funcionários de Lisboa no anfiteatro, a abarrotar, da Soeiro, onde reunia o Comité Central, e fez um violentíssimo discurso. Tocou a rebate, ameaçou os capitulacionistas, explicou que havia quem quisesse que o Partido perdesse as suas raízes ideológicas de partido marxista-leninista, que havia quem quisesse que o Partido deixasse de ter uma perspectiva revolucionária e passasse a partido burguês e com o voto como arma. E contou uma história terrível, dizendo que havia mesmo quem não quisesse respeitar a herança estalinista, e procurasse denegrir o nosso partido com essa mesma herança. Até aí nenhum dissidente, ou embrião de dissidente, tinha falado de Estaline. Mas o seguro morreu de velho e o Camarada sabia perfeitamente que terminaríamos aí. Éramos uns aprendizes, realmente. Contou então que, quando era jovem, estava a viver em Moscovo e um dirigente do Partido Comunista Alemão, um velho bolchevique, degradado pela perda de perspectivas de luta, lhe tinha proposto saírem à noite. Ele, inexperiente e novo, lá foi. Afinal ele queria levá-lo para uma noite de álcool e prostitutas e Cunhal, quando percebeu, recusou. Mas, perguntou à reunião: "Alguém aqui estranha que uns tempos depois este camarada tenha desaparecido?" Lembro-me que eu estava de um lado da sala e vi o olhar de Vítor Neto do outro. No fim ele passou por mim e disse-me baixinho: "Zita, temos de ir embora do Partido, e muito rápido!" Estávamos estarrecidos.

A dissidência

Os dissidentes comunistas russos, que tinham uma longa experiência iniciada logo em 1917, diziam que a dissidência era como a gravidez. Não se podia voltar atrás e no fim do tempo acontecia alguma coisa. E salientavam que não se podia estar só um bocadinho grávida. Começa-se por querer democratizar o Partido, na forma de funcionamento e na forma de estar na sociedade, considera-se um completo e total absurdo que a linha política assente na via armada para o socialismo, e passado pouco tempo percebe-se que o que está errado somos nós e não o Partido. (...) Pouco depois do julgamento do CC, recebi um telefonema de um velho amigo, amigo de família, João Carlos Espada, então assessor do Presidente da República, Mário Soares. Encontrámo-nos e fez-me uma proposta secreta surpreendente: disse-me que o Sr. Presidente queria falar comigo, e queria saber se eu estava disposta a encontrar-me com ele, oferecendo-se para organizar tudo. Assim foi. O João Carlos Espada organizou um jantar em sua casa, o Dr. Mário Soares chegou sem carro oficial mas com o sobrinho e chefe de gabinete Alfredo Barroso, eu fui com o meu marido, e o João Carlos Espada estava com a Graça, sua mulher.
Foi um divertido e inesquecível jantar. Falámos noite fora, e o Dr. Mário Soares quis saber o que se passava, conversou, divertiu-se a ouvir as minhas histórias. Mas fez uma coisa muito importante naquele momento: deu-me apoio para combater o medo e as intimidações que o PCP me fazia.
Passei a sentir-me mais segura e o medo foi-se desvanecendo. Contrariamente ao isolamento que Cunhal me tinha vaticinado, passei a ser convidada para todos os jantares de Belém e para outras iniciativas que o Dr. Mário Soares promovia. Tenho um profundo sentimento de gratidão para com Mário Soares, porque não teria sido capaz de resistir e de refazer a minha vida sem esse apoio fundamental. (...)
Rapidamente fiz novos amigos, particularmente entre os que trabalhavam com Mário Soares. Carlos Gaspar, que tinha passado pelo maoísmo, encarregou-se da minha educação democrática, não só através dos livros sugeridos de leitura obrigatória para quem passou anos no comunismo, como na desdramatização do que me acontecia. (...). Há porém um aspecto muito importante e que tem a ver com o facto de Carlos Gaspar ter vivido uma experiência maoísta. Todos os ex-maoístas e ex-radicais de esquerda, não-PCP, que passaram a ter uma vida fora da extrema-esquerda, assumiram os horrores da ideologia que defenderam e ficam chocados ao imaginar o que aconteceria se lá tivessem continuado e se as suas próprias ideias tivessem singrado. Mas o mesmo não acontece com os ex-comunistas: na maioria dos casos, consideram que as ideias que defendiam eram as melhores, os ideais bons e bem-intencionados, e que só a sua aplicação à realidade não foi a mais correcta.

Família burguesa e anti-salazarista

Zita Seabra cresceu no Porto no seio de uma família abastada, "burguesa": o seu avô era dono das Caves Barrocão. Contudo, o que era raro na época, os pais não se casaram pela Igeja e não a baptizaram. Sem serem anticlericais, colaboravam com a oposição e apoiavam o proibido PCP. Foi quando estudava no Carolina Michaelis que se tornou militante, deixando para trás o sonho de ser bailarina. Os anos do PCP e a dissidência

Zita Seabra aderiu ao PCP com 15 anos e aos 17 passou à clandestinidade. Em 1967, quando cortou o cabelo para não ser reconhecida. Primeiro foi "companheira" das casas clandestinas do Partido, depois dirigente da União dos Estudantes Comunistas, a UEC (a última casa ilegal em que viveu era na Travessa do Giestal, em Lisboa). Após o papel que teve na discussão da primeira lei do aborto, foi eleita para a Comissão Política e tinha gabinete à frente do de Cunhal, o "Camarada". Até que entrou em divergência em 1987 acabando por ser afastadado em 1988. Quando os pára-quedistas avançaram, na madrugada de 25, e o Ralis saiu, contámos as espingardas e as fidelidades - e a revolução socialista pareceu-me próxima. Os camaradas davam-nos confiança. O Presidente da República não era obstáculo. Era agora ou nunca. Ontem era cedo, amanhã seria tarde de mais. A organização aguardava nas casas e nos pontos previstos, e em frente à sede do PCP juntou-se uma multidão de militantes. Quando chegaram as notícias da viragem dos pára-quedistas, e do avanço dos Comandos de Jaime Neves, eu temi o pior. Chamaram-me para receber uma informação e mandaram desmobilizar tudo e todos imediatamente, confirmando que os pára-quedistas tinham virado, que tinham passado para o outro lado, que os Comandos estavam na rua e que só a Marinha se mantinha fiel à revolução - e só com a Marinha não se podia ganhar uma revolução. Vivi momentos verdadeiramente dramáticos. Fui desmobilizar os UECs, mandá-los simplesmente para casa. Tivemos a sensação de derrota como não havíamos tido antes e sentimos que ia demorar muito tempo até voltarmos à mesma conjuntura, a outra oportunidade como aquela, que nos trouxe tão perto da vitória.

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