Cavaco regressou cáustico e preferiu as fotografias às selfies

Ex-Presidente da República deixou recados ao Governo e mostrou preferir um estilo diferente do de Marcelo Rebelo de Sousa.

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Passos deixou Castelo de Vide logo após a aula de Cavaco LUSA/NUNO VEIGA
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Cavaco Silva saiu de Albufeira às seis da manhã para dar a aula às 10h LUSA/NUNO VEIGA

No átrio do hotel, vários alunos posam ao lado de Cavaco Silva para a câmara do iPhone. O ex-Presidente da República deixa-se fotografar em grupo e aceita um pedido para um retrato a dois. Mas quando o jovem se prepara para tirar uma selfie com o seu telemóvel, Cavaco Silva pede a uma terceira pessoa para os fotografar. O ex-Presidente não aderiu, ou não quer aderir, à moda das selfies, a imagem de marca do actual chefe de Estado. Esse distanciamento entre os dois esteve também reflectido no discurso feito, nesta quarta-feira, aos alunos da Universidade de Verão do PSD, embora Cavaco Silva nunca tivesse referido a Marcelo Rebelo de Sousa, nem mesmo quando criticou a “verborreia frenética”.

Sem casaco e sem gravata, Cavaco Silva começou por anunciar uma aula “informal e despretensiosa”, mas depressa se percebeu que era uma lição cheia de recados, mais ou menos explícitos, para o Governo e para o Presidente da República. Ao mesmo tempo, o antigo primeiro-ministro social-democrata mostrou que partilha a visão económico-financeira defendida pelo líder do PSD, assim como as suas preocupações com as ameaças à democracia através do controlo de entidades independentes.

Foi uma lição cáustica de um ex-Presidente da República que tem mantido reserva nas intervenções públicas e que só ao segundo ano em que foi convidado aceitou participar nesta iniciativa do PSD. Pedro Passos Coelho fez questão de se deslocar a Castelo de Vide para receber Cavaco Silva e assistir à sua intervenção na primeira fila da sala do hotel onde decorreram todas as 15 edições. Assim que terminou a aula, Passos saiu sem prestar declarações.

O antigo Presidente da República (2006-2016) citou o exemplo do chefe de Estado francês, Emmanuel Macron, que impôs regras mais restritas de acesso a informação presidencial por parte dos jornalistas. "Em França, não passa pela cabeça de ninguém um Presidente telefonar a um jornalista para lhe passar uma notícia”, disse. Sem nunca se referir a Marcelo Rebelo de Sousa ou a Portugal, o ex-chefe de Estado referiu que Macron deu indicações para que os conselheiros do Eliseu não falassem directamente com jornalistas, recusando “promiscuidade” com a comunicação social. Uma “estratégia que contrasta com verborreia frenética da maioria dos políticos dos nossos dias, embora não digam nada de relevante”, afirmou, reflectindo uma posição pessoal que é contrária ao estilo mais informal de Marcelo Rebelo de Sousa.

Realidade e ideologia

Na aula de 50 minutos, Cavaco Silva recorreu a outros exemplos europeus para concluir que a “realidade tira o tapete à ideologia”. Lembrou os “devaneios ideológicos” do antigo chefe de Estado francês François Hollande, a “bazófia” do ministro grego das Finanças Varoufakis e a forma como Alexis Tsipras “pôs a ideologia na gaveta e aceitou iniciar um terceiro resgate com uma austeridade mais dura do que aquilo que ele tinha recusado”. Sublinhando que “a realidade acaba sempre por derrotar a ideologia”, referiu medidas tomadas pelo actual Governo - sem nunca o nomear - como os “aumentos de impostos indirectos” e as “cativações de despesas correntes com deterioração da qualidade dos serviços públicos”, acrescentando que, apesar da “contabilidade criativa, acabam sempre por conformar-se com as regras da disciplina orçamental”. Mais uma vez, sem apontar directamente o dedo à actual maioria de esquerda, o ex-chefe de Estado considerou que essa realidade tem uma “tal força, contra a retórica dos que, no Governo, querem realizar a revolução socialista, que eles acabam por perder o pio ou fingem apenas que piam, mas são pios que não têm qualquer credibilidade e reflectem meras jogadas partidárias".

Esta foi a frase a que o PS escolheu reagir, horas mais tarde. "Eu gostaria que durante o tempo em que esteve na Presidência da República tivesse piado mais, ou seja, tivesse agido mais na defesa dos portugueses", afirmou a deputada e dirigente socialista Susana Amador, no Parlamento.

As críticas à forma como o actual Governo faz a gestão orçamental têm sido uma constante no discurso do líder do PSD. Pedro Passos Coelho também tem criticado insistentemente a forma como o Governo actuou perante o Conselho de Finanças Públicas (CFP), um órgão independente criado pelo anterior executivo. Essa foi a farpa mais explícita a António Costa que Cavaco Silva partilhou com os alunos, a propósito do impasse da nomeação de três membros. O ex-Presidente revelou que em 2011 foi ele próprio, em funções, quem propôs e viu aceite que a nomeação fosse feita pelo Conselho de Ministros por proposta do Banco de Portugal e Tribunal de Contas. Confessou nunca ter imaginado que a proposta das duas entidades fosse recusada pelo Governo. E considerou que isso põe em causa a qualidade da democracia: “Se o poder político controlar estas entidades, o retrocesso na nossa democracia será muito significativo”, apontou.

Em jeito de alerta, Cavaco Silva dedicou parte da intervenção a explicitar a sua posição contra a saída de Portugal da zona euro. Apelou aos cerca de 60 alunos para não ligarem aos “ideólogos” dessa tese. E foi directo no recado à esquerda, sobretudo ao PCP, que tem defendido o regime de Nicolas Maduro e é a favor do regresso do escudo: “Se perguntassem aos partidos da coligação [do actual Governo] para qual galáxia iria Portugal, talvez alguns respondessem para a galáxia onde se encontra agora a Venezuela”.

A intervenção do ex-Presidente começou por dar conta da forma como vê a informação publicada e comentada na comunicação social, dizendo que foi ele próprio alvo de “fake news” quando um “jornal diário [PÚBLICO]” publicou um artigo com o título Cavaco estraga a unanimidade do Conselho de Estado sobre sanções da União Europeia. “Matéria sobre a qual não me pronunciara no Conselho de Estado”, afirmou, referindo-se a uma reunião realizada em Julho 2016 presidida por Marcelo Rebelo de Sousa, e na qual participou como ex-Presidente da República. 

Numa mensagem final algo enigmática, Cavaco Silva disse estar “convencido de que os portugueses ainda valorizam a honestidade, a verdade”, depois de se referir às próximas eleições autárquicas. E dirigiu um repto aos alunos, aconselhando-os a lerem um artigo de Maria João Avillez publicado no Observador na segunda-feira, mas sem fazer referência ao seu conteúdo: “Não vos falte a coragem para combater o regresso da censura”. 

Apesar de incentivar os jovens à participação na vida cívica e política, Cavaco Silva desabafou: “Ninguém deve esperar gratidão ou reconhecimento”. O ex-Presidente assinou o livro de honra do hotel, tirou algumas fotografias e saiu. Nem à entrada nem à saída falou com os jornalistas. Mas deixou iluminados os rostos de muitos sociais-democratas. 

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