A volta ao mundo à procura de revoluções

O fotógrafo português Eduardo Leal anda por aí a documentar grandes revoluções e a retratar pequenas vitórias — como a ascensão das cholitas.

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Nelson Garrido
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A máquina fotográfica que acompanha Eduardo LEal Nelson Garrido
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Na sua mochila viajam sempre um crucifixo e uma pedra Nelson Garrido
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Os passaportes de Eduardo já têm algumas dezenas de carimbos Nelson Garrido

Uma pedra, um crucifixo e uma máquina fotográfica. Não explicou tintim por tintim — não sabe explicar melhor —, mas, juntando as linhas com as entrelinhas, é fácil perceber por que é que são estes os objectos que não dispensa nas suas missões fotográficas. Sim, missões.

Eduardo Leal saiu de Portugal há quase 15 anos. Nasceu na Avenida dos Aliados, cresceu entre as Antas e a Baixa, estudou na Escola Superior de Jornalismo (especialização de Rádio) e aos 23 anos foi "viver para fora". Aterrou primeiro na Escócia, onde começou a estudar Fotografia, mudando-se depois para Londres para estudar Fotografia no London College of Communication. "O meu avô, que foi capitão da polícia de Macau nos anos 1950, era fotógrafo por carolice. Andava sempre com a câmara. Fotografava um pouco de tudo, desde o dia a dia da família até ao dia-a-dia nas ruas", recorda à Fugas Eduardo, num dos raros períodos em que a família lhe põe os olhos em cima.

Do avô não herdaria apenas o arquivo fotográfico, mas sobretudo a dedicação à máquina fotográfica, um autêntico "passaporte para outros mundos", um modo de vida que surgiu de rompante quando viu a Serra Pelada de Sebastião Salgado. "Ainda não sabia quem ele era. Quando vi aquela série e os mineiros que pareciam viver nos tempos bíblicos pensei 'é assim que eu quero contar histórias'." Estudava árabe "e o Islão" porque pensava mudar-se para o Médio Oriente. Tinha consciência que "não podia ser jornalista sem viajar".

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Remedios Loza, pioneira na defesa dos direitos das cholitas Eduardo Leal

Era aquilo a que hoje chama de "viajante semiprofissional". Aos 21 anos fez a primeira viagem fora da Península Ibérica com amigos de carro até Marrocos. No mesmo ano foi viajar sozinho no Verão (Reino Unido e Escócia). Quando acabou o curso, voltou à Escócia para trabalhar num restaurante, o seu mealheiro, e foi para a América do Sul um ano "ganhar calo". Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Peru. "Ia explorar. Tirava fotografias de viagem." E mudou-se — muda-se muitas vezes — para Londres, onde, numa palestra da Magnum, conheceu Mark Sanders, curador do arquivo fotográfico Cuba in Revolution para a Arpad A. Busson Foundation. Estagiou e ficou a trabalhar nesse projecto cinco anos. Nesse período, Eduardo foi muitas vezes a Cuba. À sua frente tinha milhares de fotografias antigas cheias de pessoas e de locais para identificar. "A colecção começa nos anos 1950, Fidel na Sierra Maestra, até 1968, momento decisivo em Cuba. Estava a ver essas fotografias e pensei "gostava de ter vivido esse tempo, gostava de ter fotografado isto'. E lembrei-me da Venezuela de Hugo Chávez e das duas histórias que se cruzam."

Lembrou-se e foi. Tirou um mês de férias — a Venezuela comemorava 200 anos de independência — e, quando lá chegou, Chávez anunciou um cancro na televisão. O ano seguinte foi ano de eleições e, para Eduardo, ano de mais uma mudança. "Nos primeiros anos não tinha casa. Recorria a bons amigos, a gente muito paciente. Cheguei uns dias antes das primeiras manifestações com mortes e violência. Estava no meio de um país a ferro e fogo. Caí de pára-quedas. Começou aí a minha carreira a trabalhar a cem por cento em fotojornalismo", recorda Eduardo, que conserva uma lista "sempre activa" de sítios onde quer fotografar. "Está sempre a aumentar. A negrito são os locais que eu penso que vão ser os próximos".

O "cansaço" levou-o a pensar numa "base". "Em pouco tempo" tinha estado em "60 sítios". "Lá ia eu com a minha mochila. Não tinha casa. Também cansa... a roupa... o equipamento todo... peso sério." Base: Medellín, Colômbia, "vizinha da Venezuela, mas sem ser a Venezuela" — tem ficha na Venezuela: foi detido, foi agredido pela polícia, ainda treme quando fala nisso (salvo por um crucifixo, que nesse dia recebeu e meteu no saco?).

Eduardo mudou-se. Capítulo cholitas. Foi cobrir as eleições de Evo Morales, que exibia essa "bandeira". Eduardo já conhecia as cholitas lutadoras de wrestling, mas queria conhecer as mulheres indígenas que usam chapéu de coco e tranças tão compridas como as saias. "Aquilo não é um disfarce. O chapéu não nasceu na Bolívia, são chapéus de coco italianos que usavam os gentlemen ingleses. As saias originais são das senhoras da burguesia espanhola.  São apropriações para tentar ganhar espaço na sociedade boliviana. A sociedade não as deixava expandir. As jóias, o ouro, as pedras preciosas, os brincos pesados. É uma forma de dizer 'nós também podemos'. São mulheres indígenas que vestem com orgulho a indumentária."

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A jornalista Bertha Acarapi (La Paz) Eduardo Leal

A Ascensão das Cholitas, na galeria da Manifesto, em Matosinhos, até ao dia 26 de Agosto, "não é um projecto político". É um retrato de pequenas vitórias, a dissecação de um termo depreciativo que é usado com orgulho. "Embora estas mulheres se tenham organizado e defendido os seus direitos desde da década de 1960, o movimento rearmou-se com a eleição de Evo Morales, em 2006, o primeiro presidente indígena da Bolívia. Esse momento histórico assinala também um crescimento no orgulho de identidade entre muitas cholitas, de armação dos seus direitos no espaço da sociedade boliviana." Em La Paz, Eduardo conheceu e fotografou a Comadre Remedios, como Remedios Loza é conhecida, pioneira dos “direitos das cholitas” (em 1962 tornou-se na primeira mulher indígena a ter programas de rádio e televisão, e usou essas plataformas para dar voz aos indígenas e às pessoas desfavorecidas; em 1989 tornou-se na primeira mulher indígena a ter assento no Assembleia Legislativa da Bolívia; em 1997 foi a primeira mulher a concorrer à Presidência da Bolívia), Reveca Sangali (em 2015 eleita como vereadora para o município de El Alto), Cristina Paxi (deputada na Assembleia Legislativa), Bertha Acarapi (a segunda mulher indígena a trabalhar em televisão na Bolívia), Diana Malaga (a primeira transsexual cholita da Bolívia), Celia Laura (a primeira mulher indígena do país a tornar-se professora numa escola privada), Sara Mamani (a segunda cholita a conduzir um autocarro em La Paz), Estela Loyaza (uma de 15 cholitas que trabalham como polícias de trânsito em La Paz) e muitas outras, esperando inspirar outras mulheres que diariamente sofrem com discriminação e falta de oportunidades. "Há mais cholitas no mundo.”

"Férias é estar cá", diz Eduardo à Fugas. Cá tem Forcados, um "work in progress". Cá planeia a próxima mudança. Começou a namorar em Macau, onde dá aulas. "Vou para um mundo novo", diz. A negrito na sua lista estão as Filipinas de Rodrigo Duterte. "Acho que vou ter uma nova Venezuela."

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Celia Laura, a primeira indígena a ser professora numa escola privada na Bolívia Eduardo Leal
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