Entre os actos

Virginia Woolf, intimamente e profundamente, ao longo dos anos.

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Como sombras, acompanhamos Virginia no seu mundo, tanto interior como exterior

Virginia Woolf decidiu por fim à vida num gélido dia de Março de 1941. “Sinto que estou a enlouquecer de novo”, escreveu ela num bilhete para o marido, Leonard Woolf. A instabilidade psicológica, a guerra, o pavor da que se supunha iminente invasão nazi e o facto de Leonard ser judeu contribuíram para a sua descida aos infernos. Virginia morreu, a Guerra terminou, a família e os amigos recuperaram lentamente da perda e, em 1953, Leonard decidiu publicar extratos do diário que a mulher mantivera entre 1915 e o ano da sua morte, com a intenção de dar a conhecer a genialidade de Virginia. Optou por uma escolha de excertos ligados ao processo de escrita que, para ela, era como uma longa e por vezes penosa caminhada, feita de dúvidas, de exaltação e de triunfos. 

Nessa primeira edição ­— A Writer’s Diary — Leonard não incluiu muitos dos textos mais pessoais, tendo o cuidado de, confidenciou, “restaurar a reputação (de Virginia)”. Hoje, pode parecer estranho que uma das mais importantes escritoras do século XX estivesse em perigo de ser esquecida mas, na altura, tanto o público como os críticos pouco ou nada se interessavam pela sua obra e, com o seu desaparecimento, Leonard achou que havia um risco de ver a obra da mulher a diluir-se no prolífero legado de um conjunto de personalidades — escritores, artistas, políticos, economistas — seus contemporâneos.

Em 1977, Anne Olivier Bell — casada com o sobrinho de Virginia, Quentin Bell, com quem também escreveu uma famosa biografia da escritora publicada em 1972 — iniciou uma edição alargada dos Diários, publicados em cinco volumes, com cuidadosas e extensas anotações e um prefácio onde chamava a atenção para uma narrativa onde se encontram “os prazeres e as contrariedades diárias, as grandes alegrias e as grandes dores”. Esta versão, que surge agora em português, merece leitura atenta, porque nela se encontra uma “chave mágica” que ilumina, despudoradamente, a obra da autora, tudo o que ela absorveu e vivenciou e que transpõs para os livros, o testemunho directo do processo, sempre angustiante, da elaboração de cada romance, conto, crítica literária. 

É penoso darmo-nos conta que a mulher que nos fala jovialmente da sua vida social, das conversas, dos risos, dos vestidos, dos chapéus, das ruas de Londres cintilantes à chuva, dos pássaros, das casas, da pintura, da luz, do dinheiro — Virginia apreciava o conforto que um relativo desafogo financeiro lhe proporcionava — do amor de, e por, Leonard conhecerá a decadência física e mental que a empurrará para um acto desesperado. O seu mundo, tão rico, admirável, tão “artístico”, tão fecundo, tão densamente povoado de gente brilhante parece distante do seu “eu” interior, temeroso, inseguro, sujeito a humores extremados. No entanto, mesmo nos momentos mais sombrios arranja forças para descrever o seu estado: numa entrada, em Setembro de 1926, analisa “o horror… a chegar… uma vaga dolorosa inchando em volta do coração” (pág. 304) e reconhece que a “depressão não resulta de uma coisa concreta, mas do nada” (pág. 305). E continua afirmando o seu desejo de “estar morta” — a morte como qualquer coisa “activa, positiva, como tudo o mais, excitante; e de grande importância — como uma experiência. A única que nunca descreverei” (pág. 307), enquanto vai anotando — como se pudesse ser uma observadora exterior a si própria — a “vaga que cresce… fracasso. Fracasso, a vaga rebenta. Já não consigo enfrentar este horror”. Palavras duras e cruas, como se fossem escritas com o corpo todo.

O que é que fica da leitura deste Diário? Admiração, compaixão, perplexidade, dúvidas, revolta, a descoberta dos passos de um processo criativo, a intimidade com alguém cuja genialidade se impõe, naturalmente. Como sombras, acompanhamos Virginia no seu mundo, tanto interior como exterior. Conhecemos as suas casas, o percurso dos seus passeios, a sua fé em Leonard, a cumplicidade com a irmã, Vanessa; as amizades literárias com Tom (T.S. Elliot) e Morgan (E. M. Forster), a intimidade com  Lytton Strachey — com quem pensou casar , apesar de ele ser homossexual — e com o cunhado, Clive Bell, o objecto de um flirt que desencadeou uma tempestade entre as duas irmãs; a rivalidade/inimizade /amizade com Katherine Mansfield, quase o seu alter ego; a paixão física por Vita que admirava pelos seus modos , as suas pernas de gazela, o à vontade aristocrático, embora não se coibisse de notar a sua fraca inteligência e mediocridade literária; o desprezo (e inveja) em relação a Joyce que ela não quis publicar na Hogarth Press; a sua feroz ironia  e o exercício da “má língua”, característica dos membros do Bloomsbury Group; as suas convicções socialistas, apoiadas por Leonard, em permanente confronto com o seu elitismo intelectual; a sua energia maníaca — a trabalhar na editora, a escrever sem parar, a proferir conferências, a viajar, a receber amigos — e as suas crises de depressão que a isolavam do mundo; a sua necessidade de se destacar e a sua paralisante timidez; o seu desejo de simplicidade e a atracção pelo fausto e pelos poderosos.

Este Diário é uma obra-prima que rivaliza com o de Samuel Pepys — que, na Inglaterra da Restauração, descreveu minuciosamente as convulsões sociais em larga escala e os detalhes comezinhos da sua vida doméstica — e com os de Rousseau, Chateaubriand, Stendhal, Thomas Hardy e Ruskin, que Virginia particularmente apreciava. Woolf revela-se, aqui, íntima e profundamente, ao longo dos anos, desde mulher ainda jovem — embora comece cedo a dizer-se velha — até esses fatídicos dias em que a sua mente perdeu amarras e desistiu de lutar... e de escrever.

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