Na enfadonha Europa: amor igual, direitos iguais

É fácil idolatrar uma revolução numa terra distante. Tal como é fácil menosprezar a transformação no lugar onde estamos.

É fácil idolatrar uma revolução numa terra distante. Tal como é fácil menosprezar a transformação no lugar onde estamos.

Ninguém teria coragem de chamar à União Europeia uma revolução. Pelo contrário, a UE é chata, burocrática, abstrata e mal-amada. A UE avança ao cochichos, quando não avança às arrecuas. Ainda por cima é fácil de confundir a UE com as suas instituições e estas com os Estados-membros e os seus governos, resultando tudo numa salgalhada onde cada argumento e o seu contrário é sempre válido. Nos últimos dias tem sido possível ler, por exemplo, que “a Europa abandonou a Itália com a sua crise dos imigrantes”. Verdade ou mentira? Depende daquilo que a que se chamar “Europa” naquele início de frase. Se é das instituições da UE que falamos, tanto a Comissão Europeia como o Parlamento Europeu aprovaram diversas propostas no sentido de tomar a chamada crise migratória como um fenómeno não italiano mas europeu. Foram os restantes governos nacionais que, guiados pelo mais estreito e cego interesse próprio, sempre se opuseram a qualquer europeízação da reinstalação de refugiados, por exemplo. Mas como a amálgama entre “Europa” das instituições e a dos governos é sempre fácil, eis como se pode pegar num problema cuja solução europeia sempre foi enjeitada pelos governos nacionais e ainda assim dizer que foi “a Europa” que o criou. Para olhos maniqueístas, há uma maneira fácil de ver este novelo: tudo o que vier da Europa é mau, tudo o que vier da nação é bom (ou vice-versa). Mas essa é a maneira errada.

A maneira certa é entender que há muito de bom que se pode fazer a partir da política nacional — e o caso português, nos últimos anos, tem dado um bom exemplo disso - como há muito de mau que se pode fazer também na política nacional, sem que isso nos obrigue a deitar fora a pátria. Do lado da Europa há também coisas positivas como não faltam coisas negativas - muitas delas, da má gestão da crise do euro à negligência com as derivas autoritárias na Hungria e na Polónia, fui dos primeiros a denunciar - sem que isso nos deva levar a atirar fora o projeto europeu como um todo.

Só que esse outro olhar mais rigoroso dá trabalho, é claro, e exige procurar informação obscura que tem mais importância do que aquela que lhe dão. A União Europeia não se parece, repito, com uma revolução. E, no entanto, muito do que nela é quase impercetível altera substancialmente a realidade em que vivemos. É assim que 28 países - por agora - partilham um mesmo quadro jurídico que cria o maior espaço de cidadania plurinacional do globo. A não ser que sejamos também cidadãos chineses ou indianos, a cidadania europeia é a mais extensa em número de que é possível participar hoje, e provavelmente a mais ampla em direitos entre as maiores do globo.

Exemplos? Ontem foi notícia que o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que a expressão “cônjuges” na diretiva de livre-circulação e residência de cidadãos da UE se aplicava de igual forma a casais de pessoas de sexos diferentes ou do mesmo sexo, e que negar o direito de residência a um cônjuge de um casamento “gay” era uma violação da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Esta é uma daquelas decisões abstratas, cheias de juridiquês, e baseada em documentos recentes e de consequências ainda por desdobrar - como a própria Carta dos Direitos Fundamentais, que só têm valor equivalente aos Tratados há menos de dez anos e que ainda está em larga medida por testar.

Mas é uma decisão que vem na mesma semana em que o Supremo Tribunal dos EUA decidiu que era possível a uma empresa privada discriminar um casal gay ao recusar vender-lhe um produto comercial.

E é, acima de tudo, uma decisão baseada em direitos abstratos que se aplicam a pessoas concretas. No caso, Adrian Coman, um cidadão romeno, e o seu marido norte-americano Robert Hamilton, com quem o primeiro se casou na Bélgica. Note-se que o principal beneficiário da decisão, aquele a quem tinha sido negado o direito de residência, não é sequer cidadão de um Estado-membro da UE. E isso é possível porque a Carta dos Direitos Fundamentais se aplica quase toda tanto a cidadãos da UE como a estrangeiros sob jurisdição europeia, sendo um documento bem menos avaro e eurocêntrico do que normalmente se costuma alegar sobre a UE.

É preciso agora, e é estratégico, continuar a fazer muitas destas pequenas revoluções impercetíveis. Usar ao máximo os direitos que temos para conquistar direitos novos. E criar as associações, ONGs e fundações que ajudem cidadãos comuns — europeus, trabalhadores, imigrantes ou refugiados — a fazer valer os outros capítulos da Carta dos Direitos Fundamentais que estão ainda por descobrir. Entusiasmante? Talvez não. Enfadonho? talvez sim. Mas necessário.

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