Câmara quer todos a beber água da torneira excepto... ela própria

A quase totalidade da população de Beja coloca reservas no consumo da água da rede pública com um argumento que até agora não foi possível contornar: “sabe a mofo e cheira a achigãs”.

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Faz o que eu digo, não faças o que eu faço. Uma frase que se pode aplicar ao que se está a passar em Beja. No edifício onde os cidadãos vão pagar a factura da água, a Empresa Municipal de Águas e Saneamento (EMAS) colocou uma torneira gigante para promover o consumo humano a partir da rede pública de abastecimento. Viaturas da empresa circulam pelas ruas do concelho ostentando uma frase como se fosse ordem: “Beba água da torneira”. Funcionários da EMAS percorrem as escolas da cidade e freguesias rurais para incentivar o recurso ao consumo da água da rede pública, numa tentativa para que a mudança de atitude possa acontecer na infância já que os seus pais continuam relutantes em bebê-la ou utilizá-la na confecção de alimentos. Mas há quem não siga tanta recomendação: o executivo da própria câmara, que tutela a EMAS.

Está em curso uma forte campanha promocional, que recorre a vídeos no Facebook, onde adolescentes e adultos pedem, na mesa de esplanadas, cafés ou restaurantes, “água da torneira se faz favor”. Nos serviços municipalizados, com atendimento público, passou a ser disponibilizada, num jarro de vidro, água da torneira “aromatizada” com morangos, opção justificada com a necessidade de “acrescentar valor e proporcionar uma nova e diferenciada experiência aos seus clientes”, esclarece a empresa.

Mas a dinâmica promocional e o objectivo da campanha não vieram alterar os hábitos dos sete membros do executivo municipal (quatro PS e três CDU) que resistem a deixar de beber água mineral engarrafada, instalada em máquinas com sistema de refrigeração. Durante uma das reuniões de câmara realizada no início de Maio, o PÚBLICO confrontou o presidente da Câmara de Beja, Paulo Arsénio (PS) com esta tão óbvia contradição. O autarca admitiu a incongruência e disse que nas reuniões do executivo municipal passaria a ser disponibilizada água da rede pública. Mas esta continua arredada das reuniões de câmara.

Em Fevereiro de 2017, a EMAS reconhecia que “praticamente todos os habitantes no concelho (cerca de 20 mil consumidores) preferem beber água do “garrafão”, ou seja, comprada nos supermercados. E constatava que a população, de forma generalizada, insistia em considerar que a água fornecida na rede pública “não tinha qualidade para ser consumida, não devendo ser bebida ou usada na alimentação”. No entanto, a empresa admitia que a água da rede pública “tinha um sabor mau” mas garantia que esta “era de qualidade uma vez que cumpria todas as regras de qualidade e segurança nacionais e europeias”.

Este argumento suscita dúvidas e receios nos consumidores quando são confrontados com a água barrenta das inúmeras rupturas que têm assolado a rede pública de abastecimento. E quando empresa Águas Públicas do Alentejo (AgdA), entidade que fornece a água em alta, veio confirmar a presença de “microalgas, cianobactérias e actinomicetes” na rede pública, a população percebeu porque é que a água “sabe a mofo e cheira a achigãs”.

A campanha em curso insiste junto da população para que bebam “água da torneira à confiança”, com a indicação de que é controlada e analisada diariamente. Mas torna-se difícil aceitar este conselho quando a população interiorizou que os esgotos que produz são lançadas na barragem do Roxo, de onde é captada a água utilizada na rede pública.

Mais complicado se torna aceitar o apelo da EMAS,quando União Europeia já multou Portugal em três milhões de euros por não respeitar a legislação comunitária por continuar a lançar na bacia do Roxo efluentes domésticos sem qualquer tratamento.

E, apesar da remodelação que a Estação de Tratamento de Água (ETA) do Roxo tem sido sujeita, vão ter mesmo de ser investidos cerca de 15 milhões de euros, até ao final de 2018, na construção de uma nova ETAR e uma nova ETA.

A má qualidade da água do Roxo e os problemas que tem criado à rede de abastecimento desde o final dos anos 80 do século passado, associada ao sistema de captação e tratamento ali instalado, forçaram a AgdA a recorrer à água vinda do Alqueva por considerar que a ETA do Roxo é “uma estrutura obsoleta, servida por um sistema de adução com 22 quilómetros de conduta antiga, com muitas avarias e rupturas frequentes”.

As debilidades no sistema de abastecimento estendem-se aos ramais domiciliários. A EMAS refere que accionou, com carácter de urgência, uma “intervenção global de substituição de ramais, que está a decorrer simultaneamente e de forma contínua, com várias frentes de obra”. Num espaço de quatro meses já foram substituídos 245 ramais em 88 ruas do concelho de Beja. Foi possível identificar que 85% das rupturas ocorridas incidiam sobre os ramais domiciliários.

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