Atitudes passivas e gestos activos: a diferença importa? (a propósito da distanásia)

É por respeito absoluto à vida humana que o debate sobre a eutanásia e a distanásia tem toda a importância.

Uma situação frequente nas unidades de cuidados intensivos neo-natais é a da reanimação de recém-nascidos lesados por sofrimento pré ou peri-natal. Ou apenas a decisão de os ventilar para melhor poder tratar as convulsões repetidas.

É a obrigação. Reanimar sempre, o melhor que se sabe, mesmo na ignorância do prognóstico, às vezes até do diagnóstico. Não é só no período neo-natal. É sempre que alguém aparece a necessitar de cuidados imediatos. Porque se não o fizermos o doente não sobrevive.

De facto, o que fazemos é semelhante ao que acontece na Justiça, quando uma determinada estrutura avoca um processo. Retira-o do tribunal onde se encontra e passa a julgá-lo noutra instância, considerada mais adequada. Os médicos fazem o mesmo. Avocam o caso, retirando-o ao que seria a evolução natural para a morte. Assim ganhando tempo entretanto para perceber tudo o que se passa com ele, o diagnóstico, as lesões que tem e a qualidade de vida que vai ter a partir dessa suspensão que foi feita do curso das coisas.

Permite avaliar então, por exemplo, o grau de destruição profunda do parênquima cerebral, tornando claro para todos o diagnóstico e o prognóstico. É frequente nesse momento reconhecer que em condições normais o nosso gesto de reanimação não teria sido tomado em consciência, se já estivéssemos na posse da TAC, da ressonância magnética, do electroencefalograma e de tudo o mais a que foi possível aceder depois.

Estas situações são quotidianas. Por traumatismos crâneo-encefálicos, 'AVC's ou paragens cárdio-respiratórias demoradas, por exemplo. Muitas vezes até a idade do doente ou a informação disponibilizada de forma incompleta já pesou na decisão de levar ao hospital, ou na de iniciar medidas de reanimação.

Mas não deveria ser assim. Ao imperativo de reanimar, comprando tempo e retirando à natureza o curso normal das coisas, não deveria existir o outro lado, o imperativo de desanimar? Seria mais do que restituir à instância a que o caso foi avocado (o curso natural da sua doença), depois de reunida e discutida toda a informação que faltava na altura, o doente, agora cometido a uma 'sobrevivência' vegetativa?

Pode-se dizer que não é bem isso que está em discussão. Mas também é. O saber médico é bem menor que o poder médico, e há imensas coisas que se conseguem fazer, transplantes, modificação de órgãos e funções, porventura reanimações, sobre as quais não temos pensamento, reflexão ou distância. No tempo de Hipócrates não se conseguia manter os doentes vivos artificialmente. Muita coisa mudou entretanto.

Mas independentemente da opinião que cada um tenha a este respeito, há algo que nunca percebi. Os mesmos clínicos que acham bem, num estado de sofrimento e irreversibilidade neurológica, não alimentar por sonda, não tratar a infecção, não diminuir a febre, e até não dar insulina, podem achar intolerável desligar um ventilador em condições humanas de respeito pela vontade do próprio, da família, no conforto dos amigos e na ausência de dor e de angústia. É apenas a diferença entre gestos activos de interrupção de cuidados e as atitudes passivas, de nada fazer, embora sempre para atingir em consciência o mesmo objectivo.

Leio e releio o Juramento de Hipócrates (acabei o curso em 1975, e o juramento não era coisa que se fizesse nessa altura) e a fórmula de Genebra, de 1983, e não encontro esta subtileza.

Que moral é esta que se fundamenta no gesto e não na intenção? A vida é um valor absoluto, que todos respeitamos. E é por respeito absoluto à vida humana, que é bem mais do que o batimento cardíaco, que o debate sobre a eutanásia e a distanásia tem toda a importância. Neurologista; Neurologista Pediátrico

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