No interior da guitarra de Filho da Mãe

Água-Má aperfeiçoa a expressividade dramática da relação entre o músico e o seu instrumento.

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Filho da Mãe é um músico na plena posse das suas faculdades, procurando novas sinuosidades VERA MARMELO

Aquando do lançamento do primeiro álbum, Palácio (2013), o músico Rui Carvalho, ou seja Filho da Mãe, apanhou muita gente desprevenida. No imaginário popular, o seu passado em grupos rock (If Lucy Fell, I Had Plans) não faria prever que se entregasse a um projecto solitário para guitarra clássica. Três álbuns depois, esse efeito surpresa já não é o mesmo.

O que temos agora é um músico na plena posse das suas faculdades, procurando novas sinuosidades no seu percurso, sem perder a carga identitária que foi capaz de rascunhar desde o início. Por vezes existem projectos de universo codificado e recursos minimalistas que se tornam circulares, apostando a partir daí na procura de estímulos exteriores ou então num virtuosismo autocentrado pouco recomendável. Não é o caso de Filho da Mãe. Aqui o núcleo é ainda essa relação entre o músico e o seu instrumento. A descoberta de novos caminhos faz-se a partir de dentro, vai-se às entranhas, revolve-se dentro de si e do instrumento, analisa-se de forma emocional a não-repetição, luta-se por isso, e consegue-se chegar a bom porto. Água-Má é isso. É um lugar que aqueles que o conhecem reconhecerão, mas sempre exposto de forma diversa. Registado entre Lisboa e a Madeira, é um disco que parece captar ambientes, embora não de forma concreta, solicitando ao ouvinte que crie o seu próprio itinerário espacial. Desde o início que se disse que havia algumas alusões a Carlos Paredes na sonoridade de Filho da Mãe, mas elas vão sendo cada vez mais ténues. Mais do que a tecnicidade, ou as sugestões estilísticas, o que conta aqui é a forma total, ao mesmo tempo profundamente livre e disciplinada, como o som fluido da guitarra, feito ruído ou atmosfera, nos é devolvido. Por vezes entra em corrupio, acelera em crescendo, parecendo escapar para uma zona ansiosa, mas logo um dedilhar mais preciso nos traz outra vez uma respiração mais tranquila.

Este é talvez o registo mais depurado de Filho da Mãe, aquele em que a expressividade dramática é mais aperfeiçoada — mas a agilidade com que vai de uma grandiosidade nobre, como se atacasse a guitarra, ao dedilhado mais fértil, sensível ou comunicativo, continua lá. Por vezes pressente-se qualquer coisa de obsessivo nesta música, mas ao mesmo tempo de grande abandono, num convite imersivo que permite a cada um desenhar o seu próprio mapa emocional.

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