E perguntar ao museu o seu nome?

Se o governo e os poderes públicos estivessem a ouvir esta discussão, a primeira coisa que deveriam fazer seria acolher o debate acerca do que afinal queremos dos museus que temos, e como deve ser e chamar-se o museu que teremos.

É das primeiras coisas que se aprende num curso de história. Cadeira de Teoria das Fontes e Metodologia, no 1.º ano: perguntem ao texto o que ele quer dizer. Perguntem ao documento, ao monumento, ao vestígio arqueológico, ao artefacto, à obra de arte. Em caso de dúvida, regressem à fonte. Interpretem a fonte com atenção. Respeitem a fonte. Meditem no que ela diz.

Este sábado fui surpreendido com um texto no Expresso que logo no seu segundo parágrafo dizia: “A crónica de Rui Tavares “E que tal ‘Museu da Arrogância Convicta’?” (PÚBLICO, 30/4) leva-nos a supor que Museu da Escravatura seja o nome que também ele desejaria para um museu cuja designação começou a ser discutida.” Os autores dessa crónica que me é inicialmente dedicada são Guilherme Valente e Luís Salgado de Matos, editor e sociólogo por quem tenho estima e respeito, e dos quais esperava aquele mínimo de rigor que é — antes de se lançarem em suposições — saberem perguntar a um texto o que ele quer dizer. Com esse simples exercício escusariam de ter de se “levar a supor” que Museu da Escravatura fosse o nome que eu desejaria para um museu “cuja designação começou a ser discutida”. Por uma simples razão: se eu desejasse que esse fosse o nome, tê-lo-ia dito. Não é preciso “levar a supor” quando se lê o que está escrito.

Mas os meus interlocutores “levam-se a supor” naquele início para poderem continuar a supor crónica abaixo, e assim suporem que a designação cuja preferência me imputam é sucedâneo de um “balão de ensaio” que seria o “Monumento à Escravatura” (suponho que queiram dizer: às vítimas da escravatura) que por sua vez consideram produto de um ativismo “eivado de ódio”, que logo depois já dizem que “se sabe de onde e ao que vem: obscurantismo, ressentimento, exploração da ignorância e fragilidade social que persistem, despudorado oportunismo dos políticos” e por aí afora. Ou seja, de suposição em suposição já estamos a discutir, não o museu, mas o costume: o politicamente correto, o tribalismo opinativo, os preconceitos cruzados de uns contra outros. Não vou dignar com resposta as acusações de ódio, como não fiz antes com as acusações de que os historiadores que assinaram uma carta a abrir o debate contra a designação de Museu dos Descobrimentos tivessem “vergonha do país”; são argumentos desqualificantes para quem tem a desventura de os usar. Ora, os historiadores da carta inicial — e os outros cientistas e académicos que assinaram - abriram um debate sério, e esse debate não foi sobre o politicamente correto. Foi sobre o simplesmente correto.

Sejamos claros: eu seria pela designação Museu da Escravatura se o museu de que estivéssemos a falar fosse efetivamente um museu dedicado exclusivamente à escravatura — tema de cuja importância e relevância ninguém duvida (como sou, já agora, por um monumento às vítimas da escravatura, que aliás ganhou uma votação no orçamento participativo de Lisboa, e cuja justiça é inegável: com tantos monumentos a exploradores, como é possível recusar um monumento aos mais explorados de entre os explorados?). E seria a favor de um Museu das Descobertas se o museu fosse só sobre as descobertas científicas e geográficas de cerca de 1500. Mas o museu de que estamos a falar - e que está no programa eleitoral que ganhou as eleições em Lisboa — é sobre todos os fenómenos da participação portuguesa na “primeira globalização”: expansão, conquistas, navegações, descobertas, encontros e escravatura. Os aspetos que valoramos como positivos e os que valoramos como negativos, todos contextualizados da forma mais completa e rigorosa possível. E portanto o nome tem de refletir o conteúdo. Estamos só a pedir à sociedade aquilo que exigimos a nós mesmos: perguntar ao museu o nome que ele deve ter. E portanto é preciso perguntar primeiro o que tem relevância para estar no museu — relevância histórica e não propangadística — para depois lhe podermos escolher o nome. Se lhe chamássemos só “descobertas” estaríamos a dizer que a escravatura é uma descoberta. Se lhe chamássemos só “da escravatura” estaríamos a deixar de fora muita coisa que não é escravatura. O nome que resultar deste exercício poderá vir a ser um nome compósito, ou evocativo do lugar onde for o museu, ou um nome mais abrangente desde que não branqueie o que hoje nos repugna nem esconda o que hoje nos orgulha. Mas será certamente um nome melhor se entendermos que todos temos interesse em contribuir para um debate saudável e construtivo e não apenas a enésima repetição das trocas de insultos habituais à volta do politicamente correto.

Para terminar: hoje é Dia Internacional dos Museus. Temo bem que esta discussão sobre o nome de um museu que ainda não existe se arrisque a ser a repetição da discussão de há uns meses sobre um jantar no Panteão Nacional de Santa Engrácia, ou seja, mais uma polémica feroz mas fugaz que naquele caso esqueceu todos os outros monumentos nacionais e neste caso esquece a atenção que se deveria dar a todos os museus que já existem e que os poderes públicos tanto negligenciam, sem que os opinadores que têm tanta facilidade em acusar outros de ódio ou vergonha à pátria dediquem um décimo da sua verve a defender que se pensem os museus como aquilo que precisamos que eles sejam: um elemento central para uma sociedade civicamente exigente, informada e consciente do passado — em tudo o que ele tem de bom e de mau. Se o governo e os poderes públicos estivessem a ouvir esta discussão, a primeira coisa que deveriam fazer seria acolher o debate, tão profundo e aberto quanto possível, acerca do que afinal queremos dos museus que temos, e como deve ser e chamar-se o museu que teremos.

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