Coisas que me dão a volta ao estômago

Não se trata de averiguar se um primeiro-ministro sabe tudo o que fazem os seus ministros (caso de Passos e Macedo), mas se os ministros mais próximos de um primeiro-ministro não sabem absolutamente nada do que ele anda a fazer (caso de Sócrates, Augusto Santos Silva ou Pedro Silva Pereira).

Estão a ver aquele artigo de há dois dias onde eu argumentava que a estratégia da esquerda para proteger o PS pós-socrático consistia em elencar todos os casos judiciais que algum dia envolveram a direita, transformando o assalto à democracia de 2005-2011 num estimável passeio, apenas assombrado por duas ou três nuvens cinzentas, tão corruptas como quaisquer outras, e cujo aparecimento ninguém poderia prever? Daniel Oliveira teve a simpatia de demonstrar o meu argumento nesse mesmo dia, num artigo no Expresso intitulado “Vamos então à moralização”. Todas as comparações absurdas que eu defendi que não poderiam ser feitas ele teve o cuidado de as fazer, ensaiando até um paralelismo entre José Sócrates e Pedro Passos Coelho que merece ser transformado em monumento, para que todos aqueles que estejam interessados – e são com certeza muitos – em prestar tributo à desonestidade intelectual, ao fanatismo ideológico e ao calculismo político tenham um sítio onde ir depositar flores.

Para combater aquilo a que ele chama “um movimento de moralização selectiva”, Daniel Oliveira decidiu criticar a “criminalização política por associação”. Isto porque, segundo ele, se a culpa política por associação for para ser “levada a sério”, “todos os anteriores líderes de governo devem ser responsabilizados até às últimas consequências por actos de ministros seus”. E vai daí, dentro daquela lógica imbatível que permite comparar Vale e Azevedo com Ghandi porque ambos são carecas, Daniel Oliveira escreve isto: “O que significa que Passos Coelho está no banco dos réus políticos enquanto Miguel Macedo não for absolvido. Proponho, com base nesta versão radical e inédita de responsabilidade política, que todos os governos sejam passados a pente fino.”

Atenção: Oliveira está alegadamente a ironizar. Ele acha que isto não se deve fazer. Mas como é próprio da boa retórica, está precisamente a fazer o que diz que não deve ser feito, na medida em que coloca Passos e Sócrates no mesmo patamar e inverte a lógica do problema: não se trata de averiguar se um primeiro-ministro sabe tudo o que fazem os seus ministros (caso de Passos e Macedo), mas se os ministros mais próximos de um primeiro-ministro não sabem absolutamente nada do que ele anda a fazer (caso de Sócrates, Augusto Santos Silva ou Pedro Silva Pereira). Ora, como eu não tenho Daniel Oliveira na conta de idiota, até porque o conheço, esta confusão não é acidental. Donde, terei de o colocar na conta de “cronista que coloca o combate ideológico à frente de tudo, incluindo da honestidade intelectual” – conta bem mais grave do que a da idiotia, porque muito mais prejudicial ao debate público.

De Passos Coelho pode obviamente dizer-se muita coisa. Que as políticas foram más. Que tinha amigos duvidosos. Que o caso Tecnoforma é uma vergonha. Tudo isso é aceitável. Não foi ele, com certeza, o primeiro político a nascer com um par de asas brancas nas costas. Mas Passos escolheu Joana Marques Vidal, recuperou o prestígio do Ministério Público, nunca interferiu com a Justiça (incluindo no caso Macedo) e deixou cair Ricardo Salgado com estrondo. Isso já ninguém lhe tira – e esse é um legado que qualquer pessoa deveria reconhecer, seja socialista, comunista ou bloquista. É que isto não são opiniões. São factos. E andar a manipular factos, ou a querer transformá-los em simples pontos de vista, significa apenas uma coisa: Sócrates está morto, mas o seu legado continua excessivamente vivo.

 

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