Célebre discurso de Unamuno durante a Guerra Civil pode ser recriação literária

Historiador espanhol acredita que a corajosa réplica do filósofo ao general franquista Millán-Astray terá sido posteriormente inventada por um dos seus colegas na Universidade de Salamanca.

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ENRIC VIVES-RUBIO

O historiador espanhol Severiano Delgado acredita que um dos discursos mais famosos da Guerra Civil espanhola, o que o escritor e filósofo existencialista Miguel de Unamuno proferiu em 1936 na abertura do ano lectivo na Universidade de Salamanca, da qual era então reitor, pode ter sido inventado a posteriori por um seu colega, o professor e político republicano Luis Portillo, pai do jornalista e ex-deputado conservador britânico Michael Portillo, que ocupou vários cargos governativos nos anos 90. 

A sua teoria é citada nesta sexta-feira pelo jornal britânico The Guardian e coloca em causa a veracidade do célebre discurso, decorado por gerações de espanhóis como um exemplo de dignidade e coragem. Respondendo ao general direitista Millán-Astray, a quem chamavam "o glorioso mutilado" por ter perdido um braço e um olho em Marrocos durante a Guerra do Rife, nos anos 20, Unamuno terá afirmado: "Este é o templo da inteligência e eu sou o seu sumo sacerdote. Estais a profanar o seu recinto sagrado. Vencereis porque vos sobra força bruta, mas  não convencereis. Para convencer há que persuadir, e para persuadir necessitaríeis de algo que vos falta: razão e direito na luta".  

Além de Millán-Astray, que teria gritado "morte à inteligência!", estava ainda presente na sessão, que teve lugar poucos meses após o início da Guerra Civil, a mulher de Franco e uma plateia de nacionalistas, que já tinham também feito ouvir o lema falangista "Viva la muerte!". 

No entanto, quase 82 anos depois deste momento histórico, Severiano Delgado afirma que, na realidade, ninguém sabe quais foram as palavras exactas do reitor, uma vez que, embora a sessão tenha sido difundida pela rádio, Unamuno falou sem microfone e a sua intervenção não ficou registada. E quem afinal terá escrito a versão que ficaria para a posteridade nem sequer esteve presente. Luis Portillo conhecia Unamuno, de quem chegara a ser colega na Universidade de Salamanca, mas participava então activamente no conflito pelo lado republicano e não assistiu à sessão de 12 de Outubro, tendo tido apenas notícia do que se passara por relatos de imprensa poucos fiáveis. 

Exilado no Reino Unido após a vitória dos nacionalistas, terá sido apenas em 1941, quando era colaborador da BBC, que Portillo recriou a intervenção de Miguel Unamuno, com propósitos, defende Severiano Delgado, mais "literários" do que propriamente historiográficos. "Portillo não tenta descrever objectivamente a sessão, à qual não assistiu, mas fazer uma recriação literária destinada a sublinhar a brutalidade de Millán-Astray, com Unamuno no papel do valente que se atreve a enfrentar o infame militar", explica ao El País Severiano Delgado, bibliotecário da Universidade de Salamanca, e que vem há anos investigando o trajecto do filósofo e poeta naquela cidade. 

Portillo conhecera em Londres o romancista George Orwell, muito sensível à causa dos exilados republicanos espanhóis, e terá sido ele que o apresentou ao crítico literário Cyril Connelly, editor da revista Horizon, onde iria ser publicado, em versão inglesa, o provavelmente bastante embelezado relato do célebre discurso de Salamanca 1936, com o título Unamuno's Last Lecture. Portillo não se terá limitado a recriar a intervenção de Unamuno com base no seu conhecimento pessoal do autor e em frases que este dissera noutras ocasiões, acrescentadas de pormenores da sua própria lavra, mas inventou também, e "de alto a baixo", garante Delgado, o que Millán-Astray teria dito na ocasião. 

Vários historiadores tinham já chamado a atenção para a probabibilidade de o famoso discurso ter sido retocado, mas Delgado procurou reconstituir a sessão a partir de alguns testemunhos presenciais publicados, todos eles contraditórios com a versão de Portillo, como os Eugenio Vegas Latapié, escritor monárquico e dirigente do grupo Acción Española, de José Pérez-López Villamil, o psiquiatra de Millán Astray, ou de Esteban Madruga, vice-reitor da Universidade de Salamanca, cujo relato foi recolhido por Emilio Salcedo, o primeiro biógrafo de Unamuno. 

Mas esta provável recriação ficcionada não teria tido a posteridade que alcançou se Cyril Connelly não tivesse decidido incluir esta Última Lição de Unamuno numa antologia, publicada em 1951, dos melhores artigos da Horizon, que por sua vez cairia nas mãos de um jovem historiador britânico, Hugh Thomas, que estava a escrever uma monografia da Guerra Civil de Espanha. O livro de Thomas, The Spanish Civil War, que saiu em 1961, reproduz como verdade histórica o relato de Portillo da sessão de 1936. E como o livro teve um grande sucesso, a ele se deve, lamenta Delgado, "que até hoje se continue a considerar o discurso redigido por Portillo como sendo as palavras textuais do reitor de Salamanca", 

No entanto, se parece provável que Unamuno não tenha dito exactamente o que se lhe atribuiu, os próprios testemunhos recuperados por Delgado descrevem uma sessão tumultuosa, com ataques de parte a parte, e parece que, a dado momento, Millán-Astray terá posto fim à confusão ordenando ao reitor que acompanhasse à saída a esposa de Franco.

Também não está em causa que, apesar do seu equivocado apoio inicial aos golpistas, Unamuno, que nunca deixou de defender o regime da República, era em Outubro de 1936 um declarado opositor dos nacionalistas. Não se saberá ao certo o que disse na mítica sessão, mas sabe-se que foi imediatamente removido por Franco do seu cargo de reitor e colocado em prisão domiciliária, tendo vindo a morrer ainda antes de o ano acabar, no dia 31 de Dezembro. 

 

Notícia actualizada às 19h00.

 

 

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