Justiça mantém buraco de 274 milhões nas contas há quase uma década

Mais de 326 milhões que estavam à guarda de processos judiciais foram canalizados para o orçamento do instituto que gere os recursos da Justiça em 2008 e 2009. Quase dez anos depois, ainda estão em dívida 274,5 milhões.

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Quantias à guarda de processos judiciais, até uma decisão dos tribunais, foram usadas como receitas extraordinárias Adriano Miranda

O Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), que gere os recursos daquele ministério, tem um “buraco” de pelo menos 274,5 milhões de euros nas suas contas há quase dez anos. Isso mesmo reconhece nos sucessivos relatórios de contas, o último dos quais, publicado há uns dias, referente a 2016. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça (MJ) confirma que a dívida ainda se mantém em virtude de o instituto “não dispor de disponibilidades financeiras para a sua regularização”.

Garante, no entanto, haver “uma estratégia de regularização progressiva” e que isso não afecta o “cumprimento das suas responsabilidades perante os intervenientes processuais”.

O “buraco”, que chegou a ser de 326 milhões de euros, resultou do facto de o instituto ter usado em 2008 e 2009 dinheiro — que tinha sob a sua alçada e estava à guarda de processos judiciais — como se fossem receitas extraordinárias. A situação foi descoberta em 2010, numa auditoria feita pelo Tribunal de Contas (TdC) ao então Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça (IGFIJ).

A avaliação permitiu detectar que o IGFIJ tinha contabilizado 160 milhões de euros em 2008 e 166,1 milhões em 2009, dos chamados depósitos autónomos — rendas, cauções, pagamento de custas judiciais prováveis e outras quantias à guarda de um determinado processo judicial — como receitas extraordinárias. Estes montantes são quantias depositadas em contas na Caixa Geral de Depósitos ou através do sistema electrónico, a favor do instituto, para possibilitar, por exemplo, que um inquilino que está em litígio com o seu senhorio pague a renda mensal ou que uma pessoa sujeita a uma caução no âmbito de inquérito criminal cumpra essa medida de coacção. Uma parte desses valores podem ser restituídos às partes do processo e a outra pode vir a constituir receita própria do instituto. O destino final das verbas depende de uma decisão judicial.

Na altura em que a situação foi detectada, o MJ, então liderado por Alberto Martins, garantia que tinha pago todos os reembolsos pedidos. Tal acontecia porque, apesar do “buraco”, havia um montante muito avultado dos chamados “depósitos autónomos”, dinheiro que fica muitas vezes anos parado à espera do desfecho de um processo. A almofada tem impedido problemas na devolução das verbas à guarda destes processos, mas não apaga o “buraco”.  

As operações foram na altura autorizadas por dois secretários de Estado do então Governo, liderado por José Sócrates. Em despachos conjuntos o então secretário de Estado adjunto e da Justiça, Conde Rodrigues, e o secretário de Estado adjunto e do Orçamento, Emanuel dos Santos, permitiram que as verbas fossem gastas em despesas de funcionamento do MJ e do próprio instituto, tendo sido autorizado o seu uso para financiar o apoio judiciário, as despesas de correio e serviços de empresas de transportes.

O recurso a essas verbas ocorreu num quadro de grave défice orçamental do então IGFIJ que, em 2008, apresentava um diferencial de 170 milhões de euros, entre as receitas e as despesas de funcionamento. No ano seguinte, a situação agravou-se e o TdC destacava que o fiscal único do instituto tinha “alertado, sistematicamente e de forma detalhada, para o crescente desequilíbrio entre receitas e despesas”, estimando, num relatório, que em 2009 o “diferencial” atingisse os 323 milhões de euros.

A situação nunca foi totalmente resolvida como mostra o último relatório de contas do IGFEJ, relativo a 2016. “Mantêm-se ainda no balanço por regularizar o montante da dívida à conta de depósitos autónomos resultantes dos despachos conjuntos do secretário de Estado adjunto e da Justiça e do secretário de Estado adjunto e do Orçamento de 2008 e 2009, no montante de 274,5 milhões de euros”, lê-se no resumo.

Em 2015, o TdC fez um documento de acompanhamento às recomendações que tinha dado cinco anos antes, constatando que o instituto não tinha promovido “a devida comprovação de que as responsabilidades” estavam devidamente acauteladas. O instituto justifica que tal se tem mostrado “inviável” em “virtude de continuar a não dispor de liquidez para cobrir responsabilidades relativas a depósitos autónomos e de as receitas próprias terem uma evolução negativa”. O TdC concluía: “Constata-se inexistirem iniciativas para a resolução da situação”, apesar de sistematicamente reiterar a recomendação e da certificação legal de contas conter uma “reserva expressa às contas”.

Poucas dúvidas sobre irregularidades

O montante da dívida tem tido pequenas oscilações que não são explicadas nos sucessivos relatórios, que se limitam a detalhar o seu valor. Em 2016, estavam em dívida 274,5 milhões de euros, menos 1,2 milhões que no ano anterior. Em 2014, o montante era igual (274,5 milhões) ao de 2016 e significava menos 1,3 milhões de dívida do que no ano anterior. O relatório de contas mais antigo que o IGFEJ tem publicado na sua página refere-se a 2013, ficando, por isso, por explicar quando é que a dívida encolheu mais de 50 milhões de euros, face aos 326 milhões que existiam em 2010.

Segundo o MJ, o “valor registado como dívida é revisto periodicamente pelo IGFEJ, através da comparação das disponibilidades financeiras com as responsabilidades no âmbito dos processos judiciais, actualizando-se e registando-se a mesma em conformidade”. Assim, explica o ministério, “a diferença que se tem verificado ao longo dos anos resulta da própria actividade processual”.

Em 2010, os auditores consideraram que tinham sido violados vários princípios da contabilidade pública. Mais: os membros do Conselho Directivo (CD) do IGFIJ que, em 2008 e 2009, aprovaram as contas do organismo, sem discordância das mesmas, eram responsáveis por estas irregularidades que, “eventualmente, configuram infracções financeiras sancionatórias”. Isso significava que podiam ser multados pelo TdC. Mas tal acabou por não acontecer. “Não houve qualquer desenvolvimento após o relatório”, esclareceu há dias o tribunal ao PÚBLICO, dando conta de que o Ministério Público decidiu não avançar para o julgamento dos membros do CD do IGFIJ.

Num despacho de Fevereiro de 2012, o procurador António Cluny conclui “não restarem muitas dúvidas sobre a materialidade das irregularidades detectadas”, mas nota que os responsáveis do IGFIJ “ter-se-ão limitado a cumprir o sentido dos despachos”. Recorda que, ainda antes da auditoria, os responsáveis do IGFIJ tinham pedido esclarecimentos ao secretário de Estado adjunto e da Justiça sobre a forma de executar o despacho e enviado uma informação para o director-geral do Orçamento sobre os procedimentos a usar, sem terem tido resposta.

Face a isto, o procurador diz que lhe restam “fundadas dúvidas” sobre se as actuações dos responsáveis do IGFIJ podem ser “qualificadas como culposas, mesmo que a título de negligência”, considerando não ser provável a sua condenação em sede responsabilidade financeira. E arquiva o caso.

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