Assombrações

O livro de Isabel Rio Novo chama a atenção para as mistificações e preconceitos sobre a doença que continuam a contaminar a sociedade.

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Isabel Rio Novo: complicadas relações familiares, paixões exacerbadas e a morte DR

“A doença é o lado noturno da vida”, assim começa o famoso ensaio A Doença como Metáfora da norte-americana Susan Sontag, publicado em 1977. Aí, a filósofa examina o imaginário construído em torno das doenças — neste caso, o cancro — e tenta, racionalmente, afastar ideias pré-concebidas, e pré-científicas, que contribuíram para turvar o entendimento dessa terrível condição, e libertar as vítimas de uma injustificável culpa. Essa passagem de um “reino”, habitado por aqueles que são saudáveis, para outro “reino” bem mais sombrio, o dos que sofrem de males como a tuberculose e, posteriormente, o cancro e a Sida — pandemia a que Sontag dedicará um texto mais alargado, em 1989 — foi mitificada, principalmente a partir do século XIX, com as noções fantasistas — isto é, “românticas” — que emergiram em relação à tuberculose, um mal que se disseminou no advento da Revolução Industrial e consequente êxodo para as cidades. Inserida na corrente dos ideais românticos, que exaltavam a decadência, a ruína e a morte, a tuberculose dizimou famílias e deixou um rasto de destruição e sofrimento, aproveitado pelos poetas para cantarem com desespero, o seu destino funesto. É exactamente na charneira desta questão — entre a realidade crua dos factos e o fascínio pela mitificação — que se posiciona o novo romance de Isabel Rio Novo, A Febra das Almas Sensíveis, um título que, só por si, carrega todo um historial literário, cultural e social, utilizado pela autora como suporte da sua estrutura novelística.

Depois da publicação de O Rio do Esquecimento, em 2016, Isabel Rio Novo retoma aqui o tema das complicadas relações familiares, o das paixões exacerbadas e o da morte, sempre presente e infinitamente recriada. O Romantismo foi uma febre que exaltou a doença como algo transcendente, como perfeita celebração da alma poética. E se Sontag alude a fontes medievais e clássicas e passa por Keats, Baudelaire, Katherine Mansfield, Auden e outros, Isabel Rio Novo menciona os destinos de Cesário e António Nobre, Júlio Dinis e Machado de Assis, entretecendo factos reais com ficção. Sontag insurge-se contra a interpretação “psicológica” da doença que considera abusiva e, tal como Isabel Rio Novo, ressalva o papel que a tuberculose desempenhou como disruptora da estrutura social, familiar e individual e a forma como contaminou — como uma “peste” — não só a vida pessoal e quotidiana como, também, a criação artística. Em A Montanha Mágica — obra explicitamente referida aqui — Thomas Mann encerra o jovem engenheiro Hans Castorp no sanatório em Davos, onde mantém cativos, com a eficiência teutónica que lhe conhecemos, um número de intrigantes personagens, as quais, nessa espécie de “nave de loucos”, se entretêm a filosofar, passear, discutir e festejar com avidez as vidas presas por um fio. Isabel Rio Novo não deixa escapar essa poderosa referência, transferindo-a, não só para a figura bem real de António Nobre, o poeta que também deambulou pela Suíça — e não só — em busca de alívio para o seu mal, mas também na personagem de Armando, refugiado no sanatório do Caramulo. No entanto, se Mann instila uma forte carga metafórica no seu romance, o de Rio Novo rejeita essa deriva, preferindo-lhe um cunho diferente , “realista”, que assenta em diversas narrativas, entretecidas com extrema habilidade: a história familiar de Manuel e Alice e dos filhos, Eduardo, Armando e Gilberto, as menções à doença ligada ao ato criativo literário, o muito atento e perspicaz desenho do cenário de um país isolado, atrasado, triste e soturno, em busca frenética de uma salvação tão quimérica como a de Armando e, finalmente, a referência ao processo dos avanços da Medicina e da Ciência que chegaram a Portugal com exasperante lentidão. Existe ainda uma narradora e a sua dupla, a rapariga que vagueia em busca de testemunhos do passado e dos seus fantasmas, por entre as ruínas de um passado sombrio e claustrofóbico e que serve de instrumento literário aglutinador das várias histórias.

A doença, para além da penosa desintegração do corpo e da febril antecipação da morte traz, também, uma espécie de esquecimento, de suspensão no tempo e no espaço, o que poderá, de uma forma perversa, levar ao enaltecimento desesperado da degradação física. A tuberculose, tal como tantas outras doenças, não desapareceu totalmente, embora a investigação e a eficiência científicas tenham contribuído para uma melhoria constante. O livro de Isabel Rio Novo chama a atenção, de uma forma eficaz, para as mistificações e preconceitos que antes, tal como agora, continuam a contaminar a sociedade.

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