Uma no cravo, outra na ferradura

Os muitos que sentiram na pele a carga pesada da ditadura são a memória colectiva que nos relembra ao que não podemos voltar.

O cravo

Assinalámos, como de costume, mais um aniversário da Liberdade que Abril nos devolveu. Quarenta e quatro anos ininterruptos de celebração da máxima ’25 de Abril sempre!’. Mas será que podemos confundir este desígnio com o que parece ter-se convertido no comodismo do ‘mesmo 25 Abril de sempre’? O mesmo desfile de patentes e personalidades num dia que marca a conquista maior de um povo inteiro, que ansiava por quebrar os grilhões que o amarravam a um Estado velho, empoeirado e fascista. E esse grito mudo que Portugal interiorizava cada vez mais fundo fez-se voz activa, grito solto, palavra viva quando um grupo de bravos militares, heróis de corpo inteiro, nos resgataram o direito à condução dos nossos destinos.

Os muitos que sentiram na pele a carga pesada da ditadura são a memória colectiva que nos relembra ao que não podemos voltar. Mas há tantos filhos da Liberdade que não compreenderam o tesouro que esta revolução nos legou.

Todos temos o direito à liberdade de expressão, de associação, de confissão religiosa, de voto, de ideologia política, à educação, à saúde, à justiça e à igualdade. Mas somos realmente livres 44 anos depois da madrugada vitoriosa?

Ano após ano, o dia 25 de Abril veste-se de vermelho. Os púlpitos, os palanques, os palcos e as tribunas surgem engalanadas de cravos vermelhos. As altas patentes, as figuras de Estado, as personalidades ostentam orgulhosamente um cravo na lapela. O povo hesita entre a manifestação pública do feito exibindo o símbolo instituído e a contenção verbal e introspectiva do balanço da conquista. Um cravo, um símbolo, um mito… se não for regado o espólio de tão importante conquista.

Todos temos o direito à liberdade de expressão, mas a censura persiste, agora sem lápis azul, mas escrita a vergonhosa manipulação da verdade. Tanta que o cravo na lapela se converte em rubro de vergonha.

Todos temos direito à Educação, mas vivemos uma cultura que desdenha o mérito, que renega o esforço e a dedicação que tantos investem para atingir patamares de excelência, mas que premeia o facilitismo tantas vezes por tantos que exibem orgulhosos o cravo na lapela que deveria ser vermelho de sangue. O sangue, suor e tantas lágrimas que derramam os que obstinadamente agarram a oportunidade do conhecimento que o liberta, mas que o seu país lhe não aproveita.

Sim, há pão… mas tantas vezes tão amargo de engolir por mãos que alimentam a pobreza, em vez de a combater.

Sim, há saúde… em qualidade para todos, mas nem sempre na quantidade útil que permite agir a tempo para salvar as vidas dos nossos.

Sim, podemos decidir quem queremos que nos governe pelo voto livre, mas não votamos! A indiferença e o comodismo galopantes impedem que o direito feito dever se torne expressão da vontade nacional. Preferem tantos deixar a responsabilidade a outros, para depois manifestarem de forma irada o que não foram capazes de concretizar serenamente nas urnas. O cravo que envergam hoje deve ser vermelho de raiva. A raiva de não querer ser parte activa de um Estado que somos todos e que se legitima a cada voto que soma. Mas ninguém se importa.

Ninguém se importa porque a mesma liberdade que temos concretizada em direitos é a mesma que nos permite negar todos eles. Porém, quando apenas beneficiamos dos direitos, sem exercer os deveres a que a liberdade nos convoca, deixamos de lutar por ela.

E quando deixamos de lutar, somos vencidos. Outros tomarão nas suas mãos os nossos direitos. Por nossa incúria. Por nossa irresponsabilidade. Pela nossa inacção.

Celebremos o 25 de Abril sempre, homenageando todos quantos nos permitiram celebrá-lo em liberdade, mas regando todos os dias os cravos de todas as cores que nos garantem que legaremos aos nossos filhos um país ainda mais livre, mais justo e mais próspero.

A ferradura

Estados Unidos da América – 1 de Maio de 1886. Os sindicatos lutam para conseguir impor aos patrões a limitação da jornada de trabalho a oito horas. A adesão à greve foi gigantesca, e só em Chicago a greve conseguiu reunir mais de 200 mil trabalhadores. Esta luta arrasta-se por alguns dias, e termina com várias mortes resultantes de um conjunto de perseguições de grevistas a trabalhadores contratados, de polícias a grevistas e de ataques à polícia. Em 1889, em homenagem aos mártires de Chicago, e por decisão da Internacional Socialista, são convocadas manifestações anuais de luta pela jornada de oito horas.

Conseguiram por força da luta os seus intentos nos Estados Unidos em 1890 e em França em 1919. O dia 1 de Maio tornou-se o Dia do Trabalhador em grande parte do mundo, como marca dos acontecimentos de Chicago.

Saibamos preservar a memória dos feitos de muitos, os que nos resgataram a Liberdade e os que lutaram por direitos que hoje consideramos inalienáveis, certos de que a maior homenagem que lhes podemos fazer é cuidar destes tesouros como frágil rosa que, sem uma mão firme mas delicada, não frutifica, perde todo o seu esplendor e ficam apenas os espinhos, a lembrar-nos que, quando perdemos a Liberdade, perdemos tudo.

Aproveitemos as lições que o passado nos recomenda para, no mês em que Lisboa recebe pela primeira vez o Festival Eurovisão da Canção e tal como refere a canção que nos representa neste certame, fazer renascer em cada um os valores que nos permitam tomar em mãos o futuro e saibamos ser nós a regar o nosso jardim.

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