Problemas no paraíso: a morte de Avicii

A máquina que matou Avicii somos todos nós que a alimentamos, quando a escolhemos como modelo sedutor de vida.

Quando soube da morte do DJ e produtor sueco Tim Bergling, de 28 anos, mais conhecido por “Avicii”, que tanta comoção gerou entre os adolescentes, estava a ver na RTP1 uma reportagem com laivos de escândalo sobre um festival alternativo da chamada “música de dança”, que se havia realizado uns dias antes perto da localidade de Fronteira.

Segundo a reportagem, terão passado pelo festival cerca de 12 mil pessoas, tendo ido parar ao hospital 14 pessoas (entre as quais, três ficaram internadas). Ao mesmo tempo, terão sido efectuadas cinco detenções e terá sido apreendida droga. Tudo isto, segundo a mesma reportagem, num quadro de tensões entre a legalidade e a ilegalidade, com críticas por ser um acontecimento pouco profissionalizado, sem segurança privada, dominado pelo improviso.

A população local, confrontada pela jornalista, defendeu o festival, pelo efeito económico no comércio local, mas também mostrando tolerância perante estilos de vida diferentes. Já o autarca da vila foi menos condescendente: “Basta que um jovem de Fronteira se inicie na droga por haver aquele evento aqui para já não se justificar o apoio da câmara.”

A reportagem era pouco sustentada, parecendo resgatada dos anos 1990, quando os festivais de rock começavam a ser notícia regular em Portugal, sendo olhados como diferentes dos padrões de entretenimento da época. Hoje perante eventos devidamente enquadrados, profissionalizados, que fazem parte de uma lógica agressiva de mercado, como o Rock in Rio, Nos Alive, Meo Sudoeste, ou até qualquer arraial popular ou queima das fitas de estudantes, o ângulo das reportagens televisivas já não é o mesmo.

É como se na percepção do senso comum, e para as televisões, os comportamentos de risco fossem associados a eventos que fogem a um circuito mais estabelecido, ainda não totalmente domesticado pelo mercado, situando-se fora da lógica comercial, sendo pensados de pessoas para pessoas, e não necessariamente de marcas para os consumidores.

Pensava nisso quando recebi a notícia da morte de Avicii, alguém proveniente da mesma cultura da música de dança que a reportagem televisiva tentava compreender, embora o universo em que se movimentava constituísse por inteiro a antítese do festival que se realizou em Fronteira.

Dir-se-ia que Avicii foi durante anos a imagem resplandecente do sucesso, do profissionalismo, da exigência. O seu percurso confunde-se com o crescimento na última década da chamada “EDM” (electronic dance music), um movimento musical sem sustentação sociocultural, sem uma correlação óbvia entre a vida dos seus agentes e a música praticada. Como se fosse mera estratégia comercial impulsionada por uma indústria que, de vez em quando, necessita de produzir heróis e novos negócios milionários. 

Dinheiro pelo dinheiro. Capitalismo na sua forma mais pura. Tudo vivido por Avicii e outros em velocidade máxima, conduzidos por uma máquina voraz, profissionalizada, altamente capitalizada, feita de festivais para multidões, digressões e pressões contratuais, com muitos milhões de visualizações na Internet, luxo, competitividade, viagens em jactos particulares e muito álcool à mistura. Tudo devidamente legalizado, claro.

Melhor ainda: tudo aceite por todos nós como sendo o melhor dos mundos, o paraíso na terra, e incentivado como sendo a aspiração máxima de cada um. Afinal, quem não desejaria, que o seu filho, aos vinte e poucos anos, tivesse uma conta milionária, fosse adulado globalmente por milhões de adolescentes e convivesse com Madonna ou Rihanna?

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Avicii durante uma actuação no festival de música de Summerburst, em Gotemburgo, Suécia, em Maio de 2015 EPA/BJORN LARSSON ROSVALL

E, no entanto, por vezes o paraíso pode transformar-se em inferno. Os problemas podem maquilhar-se durante algum tempo, mas não eternamente. No caso de Avicii há o álcool e as suas complicações. Uma pancreatite aguda. O estado de saúde a deteriorar-se. A frustração de ter menos êxito a partir de determinada altura. O perceber que a sua música plastificada não perdurará na memória. O ter vivido iludido pelo vil metal. O desistir. O desejo de se isolar. A morte. E agora as suspeitas de suicídio.

Como em tantos outros casos — de Kurt Cobain a Amy Winehouse —, dir-se-á agora que aquilo que o matou foi a incapacidade em lidar com o êxito, sendo vitimado por ele. Outros, mais cínicos, dirão mesmo que são os efeitos colaterais de se viver sempre no máximo, forma de agregar responsabilidades individualizadas, fazendo esquecer as colectivas. Mas a verdade é que a máquina que matou Avicii somos todos nós que a alimentamos, quando a escolhemos como modelo sedutor de vida.

O problema é que assumir isso implicava assumir que existem problemas no paraíso. É-nos mais fácil demonizar acontecimentos que por vezes podem escapar às normas, embora mais não façam do que reproduzir aquilo que são as dinâmicas sociais um pouco por todo o lado, como o festival de Fronteira, do que imaginar que aquilo que consideramos vulgar, sistémico, legal, aceite e até incentivado por todos pode ser tão ou mais violento do que aquilo que não conseguimos enquadrar e foge ao nosso controlo.

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