Num museu sobre a ditadura talvez não caibam piratas

O Museu Nacional da Resistência e da Liberdade já tem um guião. Há 22 equipas de arquitectos que já fizeram um estudo prévio. Falta agora juntar o conteúdo à arquitectura.

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No Forte de Peniche, entre 1934 a 1974, terão estado presos 2500 homens Daniel Rocha

Com um grande optimismo, o ministro da Cultura quer exactamente daqui a um ano estar a inaugurar o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche, aquele que vai ensinar às futuras gerações o que foi a ditadura: “Mesmo que toda a obra só esteja pronta daqui a dois anos, pretendemos que no ano que vem já exista o essencial.” Foi o que Luís Filipe Castro Mendes prometeu a alguns dos membros da Comissão de Instalação dos Conteúdos e da Apresentação Museológica (CICAM), que nesta sexta-feira de manhã estiveram no Palácio da Ajuda, em Lisboa, para lhe entregarem em mão o “guião para os conteúdos” do futuro museu na Fortaleza de Peniche, um lugar com 400 anos de história e que durante 40 anos funcionou como prisão política do Estado Novo, onde actualmente existe apenas um pequeno museu municipal com conteúdos etnográficos e também ligados à história da prisão.

A CICAM, criada no início deste ano, chega quase aos 20 membros, na sua variante mais alargada, num grupo heterogéneo composto por antigos presos políticos, como Domingos Abrantes ou José Pedro Soares, vários historiadores, como Fernando Rosas ou Luís Farinha, funcionários da Câmara de Peniche, técnicos do Ministério da Cultura e ainda membros do gabinete do ministro. Tal como já tinha sido anunciado há um ano, o museu conta com 3,4 milhões de euros para esta primeira fase, que, além da museografia e a construção do seu interior, prevê ainda a recuperação dos vários edifícios que compõem a prisão, bem como uma intervenção urgente numa parte danificada da muralha – uns cerca de 100 metros em mais de 1,5 quilómetros de extensão.

Os conteúdos que foram entregues ao ministro por Paula Silva, a directora da Direcção-Geral do Património Cultural que preside à CICAM, centram-se no período de 1934 a 1974 durante o qual funcionou a prisão para onde a polícia política PIDE-DGS mandava os mais importantes opositores à ditadura que caiu com a Revolução de Abril. No documento da comissão também entregue aos jornalistas encontramos a definição de 11 núcleos para o museu: se o primeiro se organiza em redor do famoso Parlatório, onde os presos falavam com as famílias sob a vigilância dos guardas, e o segundo recua até à História da Fortaleza, à génese do sistema defensivo da região de Peniche, que começou no século XVI, já todos os restantes núcleos são dedicados ao enquadramento político da ditadura na história portuguesa e mundial com zooms sobre momentos da história da prisão de Peniche, como as várias fugas de presos ou o momento da libertação dos presos a 27 de Abril de 1974. Vai-se do Regime Fascista (núcleo 4), ao Sistema Policial e Repressivo (núcleo 5), ao Colonialismo e à Guerra Colonial (núcleo 6), onde surge, por exemplo, um subnúcleo dedicado “aos cárceres políticos do império”, entre outros cinco tão ambiciosos como “o sistema de opressão e exploração colonial”, que só por si abordará “o Estatuto do Indígena”, “o trabalho forçado”, “a violência quotidiana” e “a discriminação”.

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O ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, com o guião de conteúdos na mão, ao lado de Domingos Abrantes, antigo preso político, no Palácio da Ajuda, em Lisboa Lusa

Como o Aljube

O último núcleo do museu é dedicado à Cadeia do Forte de Peniche propriamente dita, que mesmo antes de 1934 já tinha sido um Depósito de Presos Políticos, onde estiveram detidos republicanos, anarquistas ou socialistas, logo desde o início da Ditadura Militar. Se o número de presos políticos para esse período inicial é difícil de calcular, já para a fase de 1934 a 1974 terão passado por Peniche 2500 homens, “salvo melhor investigação”, explica Luís Farinha, o director do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, outra prisão política do regime onde em 2015 a Câmara Municipal de Lisboa abriu o primeiro museu português dedicado a conteúdos históricos sobre o Estado Novo e a ditadura, com quem o PÚBLICO falou depois da reunião, mas que não esteve na Ajuda.

Jorge Leonardo, chefe de gabinete do ministro, afirma que não houve uma vontade “deliberada” de dar a Peniche o mesmo nome do museu de Lisboa, mas que “esse foi o nome proposto”. Luís Farinha chama a atenção para o facto de o nome ainda não estar definido em nenhum documento legal: “Foi aquele que obteve maior consenso entre os membros da comissão, apesar de terem sido ponderadas outras opções, inerentes à criação de um museu nacional dedicado à resistência à ditadura.”

22 projectos

Na quinta-feira reuniu-se também na Ordem dos Arquitectos (OA), em Lisboa, o júri que já está a analisar as 22 propostas entregues a 9 de Abril pelas equipas de arquitectos que concorreram ao concurso público para a elaboração do projecto do museu. Embora o ministro tenha esperança que haja um resultado “a breve prazo”, o presidente do júri, Alexandre Alves Costa, disse ao PÚBLICO que não sabe quando haverá uma decisão final, embora a próxima reunião esteja marcada para 7 de Maio: “Não existem quaisquer previsões sobre os resultados. Trata-se de um concurso da maior importância simbólica, política e histórica, talvez o mais significativo desde o 25 de Abril e, por isso, não queremos, de modo algum, funcionar por forma a não garantir a melhor qualidade para os resultados.”

Os 22 concorrentes, que são anónimos até ser escolhido o vencedor, podem ter encontrado alguma dificuldade em elaborar uma proposta que só agora vê o programa museológico ser mais detalhado. No documento com o programa preliminar que o PÚBLICO consultou, disponível no site da OA, dá-se mais atenção à história da fortaleza, falando-se, nomeadamente, da importância de um sistema defensivo que evoca as memórias de piratas. Um deles, que se cruza com a história de Peniche, é o lendário Francis Drake, ao serviço de Isabel I de Inglaterra.

À equipa de arquitectos foi apenas pedida uma intervenção no interior dos edifícios e no espaço público, uma vez que as fachadas, caixilharias e coberturas serão reabilitadas pela DGPC. A directora-geral diz que “o projecto para a reconstrução do edificado já está pronto”, sendo a sua expectativa que as obras comecem antes do Verão.

Quanto às propostas que o júri tem nas mãos, Paula Silva diz que esta é a fase do estudo prévio, devendo agora ser escolhida a equipa vencedora que vai detalhar o projecto de arquitectura: “No estudo prévio, o desafio dos arquitectos é mostrar a capacidade de criar um espaço adaptado à visita, como as instalações sanitárias, o auditório, os espaços de reserva, etc.”

A partir de agora, diz Luís Farinha, espera-se que haja um entendimento entre a equipa de arquitectura e a dos conteúdos: “O museu vai depender muito do equilíbrio entre três variáveis: o projecto de arquitectura, as contingências físicas da recuperação e a valorização da prisão política que desencadeou todo este movimento de recuperação do edifício.” A própria fortaleza, lembra o historiador, já conta muito a história deste monumento nacional (desde 1934), “mas claro que o peso dos núcleos depende bastante do espaço que for possível ocupar depois da recuperação dos edifícios”, alguns deles muito batidos pelo mar. “Aí, não será o melhor local para colocar um arquivo.”

Para o ministro da Cultura, o Museu de Peniche, que será o 15.º museu nacional a integrar a rede da DGPC, é um exemplo de “descentralização”, porque “são poucos os museus nacionais fora dos dois principais centros urbanos, Lisboa e Porto”.

O Museu de Peniche, defende Paula Silva, é “um processo continuo”, uma vez que estamos apenas no início, por exemplo, da recuperação da muralha, num investimento que aí não conseguiu ultrapassar os 150 mil euros: “Se recuperássemos mais muralha, não fazíamos o museu.”

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