A encruzilhada europeia

Como é difícil de explicar como funciona, ou não funciona, a União Europeia, é muito fácil ou culpar “a União” por tudo o que corra mal, ou tratar “a União” como uma fachada, que mascara interesses “nacionais”

A União Europeia é uma associação de democracias, que tem por objetivo promover a paz e a prosperidade na Europa. Dito assim, parece simples. Mas não é. Entidade política e legal “sui generis”, inédita, a União Europeia é complexa, confusa e difícil de entender. É o resultado de décadas de progressiva integração jurídica e económica, sucessivos compromissos e negociações institucionais e alargamentos a cada vez mais Estados membros. Não surpreende, pois, a distância sentida pelos cidadãos em relação à União Europeia, que se torna presa fácil para a demagogia de populistas e nacionalistas de várias estirpes, à esquerda e à direita.

Infelizmente, o debate europeu facilmente se transforma num conflito entre discursos nacionalistas, que não procuram verdadeiras soluções europeias, mas sim exceções protecionistas para proteger certos grupos de interesses “nacionais”. Ironicamente, é muito fácil beneficiar uns poucos, em detrimento dos demais, enquanto se invoca a proteção de um suposto “interesse nacional”. O resultado é o sacrifício da prosperidade e do progresso nos altares de egoísmos coletivos de cariz nacionalista. No tempo da Internet e da Easyjet, e em que quase um em cada 14 habitantes da União nasceu num país diferente daquele onde vive, andamos agarrados, na Política, a esse mito do séc. XIX que é a “nação”.

Na comunicação social, os temas europeus, quando por acaso são tratados, poucas vezes o são fora de um prisma puramente nacional. Nas escolas, estuda-se a União Europeia, mas o prisma é o mesmo. Até nas eleições europeias, partidos e comunicação social dedicam o seu tempo a discutir política interna do Estado membro, e os cidadãos europeus tratam essas eleições como de segunda linha e, em especial, como uma forma de castigar o Governo em funções. É fácil culpar a União Europeia pelos males dos Estados membros e ignorar a sua contribuição para os seus sucessos. Os benefícios da União Europeia são muitas vezes dispersos e quase passam despercebidos no dia a dia. Só os notamos quando desaparecem (e não é impossível que desapareçam). Mas quem se sinta diretamente prejudicado por políticas europeias, facilmente aponta um dedo acusador. À União Europeia, tudo se exige e nada se perdoa.

A organização “sui generis” da União vem servindo também para que esta seja tudo para todos. Acomoda parcialmente pretensões federalistas, confederalistas e nacionalistas. Isto contribui para a reduzida inteligibilidade do seu funcionamento. Uma explicação cabal implica explicar a interação entre a Comissão Europeia e diversas agências europeias, o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Conselho da União Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia e os demais tribunais europeus, o Banco Central Europeu, e a relação de tudo isto com os próprios Estados membros. Para tornar tudo mais complexo ainda, esta interação varia dependendo da matéria. Tudo isto é ainda complicado pela possibilidade de certos Estados membros poderem avançar mais depressa que outros na integração, numa lógica de “Europa a duas velocidades”. 

A Comissão Europeia ora é acusada de ser demasiado tecnocrática, ora demasiado política. Embora o Parlamento Europeu tenha já levado à queda de uma Comissão, à queda de candidatos a Comissários e tenha imposto a seleção do Presidente da Comissão atendendo aos resultados das eleições europeias, continua a dizer-se que a Comissão não presta contas a ninguém. Embora muitas decisões durante a crise tenham sido tomadas à margem da Comissão, esta é sistematicamente acusada de ter demasiado poder, em detrimento dos Estados membros.

Os Estados membros, através do Conselho Europeu, têm influência decisiva na agenda política da União. Através do Conselho da União Europeia, têm intervenção direta no seu processo legislativo, ainda que disponham de poder de veto em cada vez menos matérias. Pode discutir-se como se formam as maiorias e a distribuição efetiva de poder entre Estados membros. Mas as regras eram conhecidas quando houve a adesão, e a forma de as alterar é, também ela, conhecida. Embora conhecida, não é fácil de alterar. E é mais fácil atacar as regras do que apresentar soluções concretas de melhoria.

A atuação da União Europeia tem legitimidade democrática direta e indireta: direta, através da intervenção do Parlamento Europeu, eleito diretamente pelos cidadãos europeus por sufrágio universal e direto, e que tem vindo paulatinamente a ganhar poder e proeminência na política europeia; indireta, derivada da natureza democrática dos respetivos Estados membros e dos processos que estes utilizam para aderir à União Europeia e para implementar políticas europeias. Ainda assim, muito se fala da falta de legitimidade democrática da União; mas, importa não esquecer, o Tratado Constitucional, que reforçaria, em certa medida, essa legitimidade democrática, soçobrou perante referendos (nacionais) em França e nos Países Baixos.

Como é difícil de explicar como funciona, ou não funciona, a União Europeia, é muito fácil ou culpar “a União” por tudo o que corra mal, ou tratar “a União” como uma fachada, que mascara interesses “nacionais” (ou também “globais”, como o “grande capital internacional”). A crise económica e financeira e a crise das dívidas soberanas são um verdadeiro teste à resiliência institucional da União. A União Europeia poderá sobreviver ao Brexit, se/quando e nos termos em que este ocorrer, mas terá também de sobreviver à dicotomia Norte-Sul e à “democracia iliberal” que se espalha na Europa de Leste. É preciso um novo compromisso europeu que reinvente a União Europeia, impedindo a sua destruição por discursos xenófobos, à esquerda e à direita, contra os “povos do Norte” e os “povos do Sul”. Em teoria, o fim da União Europeia resultaria em “mais soberania”. Na prática, uma soberania meramente simbólica, em que os Estados membros seriam menos prósperos e menos influentes. Na política e na economia.

O futuro da União Europeia está neste momento, e permanentemente, em jogo. Construída, paulatinamente, ao longo de décadas, por democracias modernas, tem de resistir aos realinhamentos políticos e partidários que estão a trazer para o poder movimentos populistas e soberanistas. Mas esse realinhamento tem também feito surgir movimentos mais marcadamente pró-União que alguns dos atuais partidos ditos “europeístas”. Em Espanha, o Ciudadanos procura afirmar-se como partido pós-nacional. Em França, o La Republique en Marche, de Macron, tem ideias para a reforma da União Europeia. A nova coligação na Alemanha, de Merkel, poderá estar interessada em discuti-las. Discutiram-se listas transnacionais e discutem-se agora, novamente, verdadeiras contribuições europeias. A própria Comissão Europeia projetou diversos cenários para o futuro da União, com mais e menos integração, num relatório recente.

Para defender a União, precisamos de a aproximar dos cidadãos europeus, de fortalecer a cidadania europeia, de tornar o seu processo de tomada de decisão mais facilmente escrutinável e transparente, em especial no plano orçamental. Poderá ser interessante ponderar institucionalizar de forma mais clara a “Europa a duas velocidades”. Impostos europeus significariam novos recursos próprios para a União e uma possível simplificação do processo orçamental. Listas transnacionais poderiam fomentar um verdadeiro debate sobre questões europeias durante as eleições para o Parlamento Europeu, levando os debates nacionais a saírem das respetivas “paróquias”.

O debate sobre o futuro da União Europeia serve para responder a uma pergunta: conseguimos mesmo viver de acordo com o seu lema, unidos na diversidade? Se a resposta for sim, temos paz e prosperidade. Se não, temos mais pobreza e declínio. 

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