As fantasiosas canções barrocas de um rapaz inglês

The Much Much How How and I, de Cosmo Sheldrake, soa a um livro infantil transformado em canções, notavelmente pormenorizado.

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Cosmo Sheldrake, felizmente, parece pouco interessado em perder tempo com a realidade

Podia ser uma história infantil para garantir que as crianças adormecem com as cabeças cheias de impossibilidades e acordam a achar que o mundo é mais elástico do que realmente é. Cosmo Sheldrake seria, com toda a certeza, um puto franzino, sardento e com a cabeça cheia de Lewis Caroll e Roal Dahl quando, aos quatro anos, se sentou a um piano e desatou a aprender a tocar de ouvido. Ainda assim, pouco contente com isso de dominar aquelas teclas de ébano e marfim, foi juntando outro e mais outro e, à medida que crescia, acumulou saber em cerca de 30 instrumentos diferentes. Para ser uma one-man band, Cosmo precisaria de, pelo menos, mais dez a doze braços e mais duas ou três bocas. Os pés podiam continuar a ser dois, que não há assim tanto da sua música que passe por esse plano mais rasteiro.

Ao nível dos pés, na verdade, talvez apenas algumas plantas que aparecem nas letras de canções que acolhem com prazer o nonsense e os tais impossíveis que muito lhe devem ter ocupado o cérebro enquanto dormia incontáveis noites da sua infância. A música do inglês, uma folk de tentações barrocas e de um aprumo melódico capaz de colocar Paul McCartney em sentido, soa a um livro infantil transformado em canções, notavelmente pormenorizado, belo e a desafiar as regras da lógica e do bom comportamento. Já houve quem ouvisse no rapaz Sheldrake Kinks, Moondog e Herbert (co-produtor do álbum) em simultâneo. E por muito que, de chofre, uma tal trindade possa soar a disparate pegado, a verdade é que este miúdo junta em si uma voz distintamente inglesa, uma queda para canções de câmara e um fascínio confesso por explorar a ideia de ambientes sonoros.

A biografia, uma vez mais, ajuda a baralhar as peças todas e a criar este ser improvável: filho de uma professora de canto gutural mongol, fã da literatura de Lewis Caroll e Edward Lear, estudante de improvisação vocal em Nova Iorque com Bobby McFerrin e compositor de música para teatro — por exemplo, um ciclo de peças breves de Samuel Beckett levado à cena no Young Vic. Agite-se tudo isto e aquilo que daí resulta é uma música tão delirante quando obedece a ritmos saltitantes como o coelho branco de Alice no País das Maravilhas, quanto ao desacelerar e se tornar soturna — mas sem perder o tom fantasioso, com perigos à espreita por detrás de sorrisos escancarados.

Musicalmente, Cosmo transporta qualquer coisa dos horizontes sem-fim de Syd Barrett, uma voz com uma cadência que lembra, aqui e ali, o homem dos Alt-J — mas sem a electrónica como muleta da folk — e uma penetração do psicadelismo nas suas canções de têmpera folk ao nível daquilo que as Stealing Sheep fizeram brilhantemente em Into the Diamond Sun. Tudo isto soa a música de cores garridas, a uma folk que se recusa a ser mortiça ou a crer que a sua beleza tem de ser museológica. E isso tanto vale para o desvario de Hocking, com os sopros a esvoaçarem por ali fora, quanto para a suprema elegância de uma canção como Wriggles.

A elegância de Cosmo Sheldrake lembra, aliás, a de um jovem adulto de roupas justas, cujo corpo cresceu repentinamente sem lhe dar tempo para tirar o casaquinho tweed pré-púbere. Cosmo é um adulto encharcado de uma invenção que não se livrou da infância e faz de cada canção um espectáculo de possibilidades. E, felizmente, parece muito pouco interessado em perder tempo com a realidade.

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