Os elefantes da cultura

O Governo, de uma vez por todas, tem de decidir se o objectivo para a cultura é sujeitá-la à eutanásia.

Depois da manifestação do Rossio, na sexta-feira, e da alegria de ver tanta gente conhecida, amigos e colegas de muitos projectos, de muitas aventuras no teatro e no cinema, uns com trabalho, outros sem trabalho, e outros à espera de poderem começar, dirigi-me ao Teatro Maria Matos. De caminho, tentei dar um sentido para as opiniões e os discursos que tinha escutado. Há lutas que vale a pena ter, há outras que estão condenadas. Para ganhar uma guerra, por vezes há que admitir perder algumas batalhas, ou adiá-las para momentos mais oportunos.

A precariedade, por mais dramática e injusta que possa ser para a classe artística, é uma delas. Não são os artistas que vão abandonar a precariedade em que sempre viveram e trabalharam, são quase todos os outros sectores da vida económica que têm vindo a resvalar inelutavelmente para ela. As duas últimas gerações que entraram no mercado de trabalho, em Portugal ou no resto do mundo, estão já devidamente familiarizadas com esta fatalidade. Este problema não é específico da cultura nem de Portugal, e implica medidas e soluções que em muito ultrapassam o âmbito de uma classe ou de um contexto político ou social como o nosso, periférico que é.

O que é então específico da classe artística e da nossa área cultural? Volto ao Teatro Maria Matos, e à peça Sobre lembrar e esquecer que lá vi. Logo na cena de abertura, é contada a história de um jardim zoológico que foi fechado. Os animais foram todos mortos menos os elefantes, que foram abandonados à fome. Quando os foram encontrar, já mortos, os elefantes mantinham-se na posição em que pediam comida.

Não é preciso ser muito subtil para compreender quem são os elefantes desta história. O Governo português, de uma vez por todas, tem de decidir se o objectivo para a cultura é sujeitá-la à eutanásia. Tem duas opções: a eutanásia activa, que significa acabar com o financiamento às artes; e a eutanásia passiva, em que para atenuar a escandaleira dessa morte a crédito serve uma dose piedosa de morfina e medicamentos homeopáticos, sob a forma de concursos mal amanhados e tardios, com penosas exigências burocráticas que denunciam ausência de confiança nos seus parceiros, acompanhados de uns reforços orçamentais para calar e dividir.

Há uma terceira alternativa e é assumir, de uma vez por todas, que a cultura é mesmo uma área estratégica para a sua política de desenvolvimento e crescimento do país. Que é um factor de riqueza material e moral. Que é o cimento de uma sociedade tão plural como é a nossa.

Elevar a cultura a ministério, julgávamos nós, já representava esse compromisso político: sim, a cultura faz parte dos objectivos principais do Governo, naquilo que significa a preservação do património material e intelectual; a investigação que serve para validar e dar a conhecer património que existe mas tem sido ignorado ou negligenciado; naquilo que representa, também, a criação de mecanismos que promovam o florescimento de novos valores e forças renovadoras para a dinâmica de uma sociedade.

Só se justifica a criação de um ministério porque se aceita como relevante promover a produção e a programação cultural, e articulá-la com os equipamentos existentes, e cruzá-la com outros sectores, e implementá-la em todo o território, e promover intercâmbios internacionais.

Mas para que esse ministério funcione é preciso criar uma política cultural, e isso implica: ter uma ideia! E depois desenvolver uma estratégia que possa ser interpretada pelos diversos agentes, para que os concursos de financiamento possam ter critérios simples e claros, com prazos claramente definidos e respeitados, e onde se estabeleçam de forma precisa os objectivos, as exigências e as prioridades.

Mas aquilo que se tem vindo a fazer, por palavras ou actos, denuncia que o ministério não existe – ou pelo menos é tão confuso, trapalhão e obscuro, tem uma tão patética ausência de recursos financeiros e humanos, que não se atinge quais são os critérios, fundados em que estratégia, e que ideia vem a ser essa que traduz uma política cultural.

Até que isso se esclareça, e sejam dadas respostas elementares, toda esta problematização e vontade para o diálogo só pode significar uma coisa: não existe uma política cultural, não existe uma estratégia, e, em rigor, tão pouco existe um ministério. É apenas um cenário de cartolina, que se desequilibra com uma simples polémica e cai para trás quando uma classe inteira o abana com uma dúzia de protestos.

No interesse da sua própria dignidade e firmeza, o Governo tem de acabar de uma vez por todas com este comportamento em relação à cultura. É uma área estratégica ou é apenas um abcesso que vai suportando com cuidados paliativos? A classe de agentes culturais deve ser tratada como uma doença aguda, como uma doença crónica, ou representa um motor da nossa vitalidade enquanto país?

Se a resposta é a doença aguda, que se acabe já com isto. Que se acabe com o financiamento às artes e também com a mentira deste ministério. Se a doença é crónica continuem-se com os mesmos equívocos, enquanto o moribundo não se fina. Para tal, basta um secretário de Estado, como no tempo do PSD. Mas se a cultura é mesmo uma das alavancas principais da nossa sociedade, uma das ferramentas mais eficazes para promover uma sociedade aberta, dinâmica e preparada, então que se injectem de forma robusta e corajosa recursos no ministério. Imaginação, conhecimento e experiência não nos faltarão para nos amanharmos com ele.

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