O maravilhoso trio de Sara Serpa não tem onde se esconder

Dez anos depois de chegar a Nova Iorque, chamou Ingrid Laubrock e Erik Friedlander para um novo trio dedicado a composições tão vulneráveis quanto encantadoras. Close Up é o testemunho maior da sua afirmação na cena jazzística de hoje.

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Vera Marmelo

Não haverá seguramente muitos tempos mortos na vida de alguém que tenha conseguido infiltrar-se na engrenagem da música improvisada de uma cidade com a intensidade de Nova Iorque. Há dez anos, quando Sara Serpa ali chegou, um período menos intenso na sua actividade poderia abalar a confiança na capacidade de sobreviver num lugar que mastiga e cospe tantos daqueles que procuram vingar nas suas ruas. Mas depois de ter sido descoberta e chamada por Greg Osby para a sua editora, e de se ter tornado a primeira artista portuguesa a actuar no mítico Village Vanguard no ano em que se mudou de Boston (onde estudava) para Nova Iorque, depois de entrar no círculo de músicos que gravita em torno de John Zorn e depois de o seu número ter passado a constar da agenda telefónica de muitos dos músicos de proa do meio nova-iorquino, uma temporária desaceleração nos seus projectos passou, afinal, a equivaler a tempo para compor de forma mais desafogada.

Foi num desses períodos recentes que Sara Serpa começou a equacionar uma nova formação, que lhe permitisse tocar com músicos que admirava mas com quem tinha, até então, partilhado apenas experiências episódicas. “Quis pensar em pessoas diferentes com quem poderia tocar e que isso fosse também um desafio para mim”, diz ao Ípsilon acerca do trio que montou em Janeiro de 2017. E os dois nomes que lhe vieram à cabeça, Ingrid Laubrock e Erik Friedlander, dois espantosos instrumentistas que se encontram entre os mais brilhantes músicos do jazz contemporâneo, traziam consigo o desafio muito concreto de colocar a voz no meio de dois instrumentos pouco habituais no seu percurso – saxofone e contrabaixo.

Após a basilar ligação inicial a Greg Osby, os anos seguintes de Sara passaram por uma afirmação que encontrou sobretudo eco nos duos com o pianista Ran Blake e com o guitarrista (e seu companheiro) André Matos, assim como pelo convite para se juntar, em 2012, ao quarteto vocal Mycale, formação criada para interpretar o Book of Angels de John Zorn – e com a qual gravou, para a Tzadik, o álbum Gomory. Foi enquanto membro das Mycale que Sara se cruzou com Erik Friedlander, nalgumas das excêntricas maratonas de artistas-satélites do seu mundo com que Zorn vai correndo o planeta (e que terá, em breve, novo capítulo no Jazz em Agosto).

Friedlander passou, assim, a fazer parte da constelação de músicos “possíveis” para chamar para tocar consigo e, na primeira oportunidade que teve, aproveitou a marcação de um concerto para desafiar o violoncelista e Ingrid Laubrock – “sempre que toco com ela fico fascinada com o som, as ideias, como usa o saxofone de forma lírica mas também super experimental”, descreve – para montar um novo trio. A especificidade desse encontro entre voz, violoncelo e saxofone trazia de arrasto um outro atractivo: sentar-se a escrever música para aquele ensemble insólito.

Os ensaios e a primeira actuação revelar-se-iam tão entusiasmantes que Sara aproveitou todas as brechas durante os seis meses seguintes para voltar a apresentar-se com o trio. E foi afinando a identidade musical de uma combinação de instrumentos tão invulgar que não demorou a tornar clara uma das suas características mais encantatórias, mas também mais arriscadas. “Uma das coisas de que nos apercebemos quando começámos a tocar”, explicita, “foi o quão expostos estávamos. Normalmente, quando se tem um instrumento harmónico ou rítmico por detrás, há certos papéis que estão assegurados por esses instrumentos. Num trio como este, todos temos a responsabilidade de manter o tempo, ouvir a harmonia, assegurar a estrutura ou criar backgrounds para os outros improvisarem. Esse jogo foi muito interessante para mim.”

O que esta particularidade desencadeava era não apenas o prazer de se ver a compor para instrumentos novos na sua criação musical, mas também a forçosa redefinição de um espaço para a voz. Com este trio, Sara não podia deixar que as suas linhas melódicas tomassem as mesmas liberdades do que se sobrevoasse com a voz uma base segura cortesia de um piano ou uma guitarra. “É um espaço mesmo igualitário”, comenta. “Cada um de nós tinha mesmo um papel específico em cada tema e, por isso, foi mesmo um desafio para mim encontrar esse espaço.”

Tamanha vulnerabilidade contribui para a natureza única desta música. Oiça-se Pássaros ou Sol enganador e não custa perceber que a falta de uma rede de segurança harmónica ou rítmica pode, de facto, “prender” um pouco os instrumentos, obrigando a uma disciplina e a uma concentração plena naquilo com que cada contribui, para não deixar o tema cair ou não se enfiar num beco sem saída. Mas, por outro lado, torna cada intervenção e cada nota uma pequena revelação, calibrada, consequente, plenamente justificada por aquilo que traz ao todo. E isso faz com que Close Up se oiça frequentemente como uma belíssima dança a três, em que os músicos trocam de papéis de uma forma solidária, fluida, como se avançassem agarrando-se sempre uns aos outros, amparando-se para que nenhum fique, em momento algum, mercê de um tropeção ou de um passo em falso, totalmente desprotegido.

Sem esconderijo possível, toda a música que se ouve em Close Up é tão aparentemente frágil quanto envolvente. Ajuda que a decisão da compositora tenha sido a de preservar o resultado das gravações sem maquilhagens posteriores – aquilo que se ouve foi o que aconteceu num dia de Junho de 2017, na casa do engenheiro de som Pete Rende, em Brooklyn. Ajuda também que com músicos deste calibre o resultado seja sempre não menos do que admirável.

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Carlos Ramosa

De Kiarostami a Ruy Belo

Ainda que tenha uma óbvia elasticidade para acolher a improvisação, a música de Close Up tem uma base essencialmente escrita. Característica que, de uma forma não premeditada, aproxima muitas vezes a sonoridade do trio a um modelo da música de câmara. “São possibilidades diferentes”, diz Sara Serpa, potenciadas pela segurança que lhe oferecem Laubrock e Friedlander, enquanto intérpretes exímios da música escrita mas também enquanto gente que sabe fechar os olhos às partituras e desviar-se o suficiente do plano sem o abandonar completamente. O pensamento por detrás da composição não se tornou, por isso, um monstro que teria de ser alimentado de forma incessante.

Os seus períodos de composição, distingue, dividem-se entre fases em que impera o compromisso, tendo de assumir um perfil “funcional e prático”, deitando ideias para o papel, e outras em que, sem um fim imediato à vista, percebe retrospectivmente terem sido dominadas “pelo silêncio e pela calma”, e em que acontece “cada tema ficar associado a um momento específico” da sua vida que a pode lembrar de alguma situação por que esteja a passar, uma pessoa, um livro ou um filme marcantes nesse período.

No caso de Close Up, Sara sinaliza o papel fundamental do filme homónimo de Abbas Kiarostami, cuja descoberta enquanto compunha para o álbum adquiriu a importância de um cenário constantemente em fundo. Com pistas mais óbvias e directas, o álbum cita igualmente a literatura de Virginia Woolf (através de uma entrada do seu diário que é extirpada para se tornar a letra da esquiva The future), a filosofia de Luce Irigaray (a partir de um texto incluído em Between East and West: From Singularity to Community que reflecte sobre a invisibilidade da maternidade, cantada em Woman, belíssimo tema nos arrabaldes da folk) e a poesia de Ruy Belo (cujo poema Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração é aqui seccionado e adaptado para caber em Pássaros).

De Woolf, a cantora e compositora retirou sobretudo “a ideia de o futuro ser escuro ou desconhecido, mas sem que isso seja uma coisa necessariamente má”, enquanto Luce Irigaray – cujos textos inspiraram também uma suite para o colectivo City Fragments – lhe estimulou uma reflexão sobre a sua condição de mulher artista. “Fez-me pensar como eu não queria que muita gente soubesse quando estive grávida, porque sentia que se isso acontecesse não me iam dar trabalho ou iam pensar que estava fora de jogo.”

Acabou por não sentir que a maternidade teve, de facto, efeitos na sua agenda profissional. Mas Sara Serpa não finge ignorar como a maternidade e as suas implicações na vida pessoal são escondidas para que esses efeitos não se verifiquem. Numa questão mais ampla da sua postura pública feminista, juntou-se ao movimento We Have Voice, formado por mulheres de diferentes gerações e orientações sexuais, numa “reacção a muitas histórias de assédio, violência e discriminação sexual”. Aquilo que as juntas é tanto a denúncia de episódios de abuso quanto a reivindicação de uma representação mais fiel da realidade artística em termos de oportunidades de trabalho.

Na mesma senda de relação com estruturas de poder, Sara montou o projecto audiovisual Recognition, em resposta a um convite de John Zorn, e em que a par de Zeena Parkins e Mark Turner cria uma banda sonora para uma narrativa acerca de “invisibilidade e privilégio” com recurso a textos de Amílcar Cabral e vídeos do seu avô angolano, registados durante a Guerra Colonial. Algo que define como “um projecto que tenta oferecer resistência à homogeneização da história colonial europeia” e em que compara a “ocupação brutal quase a um prolongamento da escravatura”.

São apostas de uma cantora que sabe quando usar a voz para carregar palavras e quando a tratar apenas como recurso melódico, e que contribuem para sedimentar a sua crescente reputação no meio nova-iorquino. Dez anos depois, Sara Serpa já não é uma outsider – a cidade não a cuspiu e a cantora sobreviveu. Close Up é talvez a prova mais cabal de que, ao gravar com Friedlander e Laubrock, está hoje entre iguais.

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