João Gilberto, bossa nova, velhos problemas e um drama familiar

O génio criador da bossa nova, João Gilberto, está hoje a braços com um doloroso drama familiar: a filha conseguiu a sua interdição e pediu à justiça para lhe arrombar a porta de casa, dizendo querer salvá-lo.

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Vão arrombar a porta de João Gilberto. Meio século depois de um disco, Chega de saudade, “arrombar” com estrondo as portas da música brasileira para fixar os alvores da bossa nova, agora é a porta do apartamento do seu histórico compositor que vai ser arrombada, por decisão judicial e a pedido da sua filha, a também cantora e compositora Bebel Gilberto. Como se chegou até aqui?, interroga-se a imprensa brasileira. Mas todos sabem a resposta.

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Vão arrombar a porta de João Gilberto. Meio século depois de um disco, Chega de saudade, “arrombar” com estrondo as portas da música brasileira para fixar os alvores da bossa nova, agora é a porta do apartamento do seu histórico compositor que vai ser arrombada, por decisão judicial e a pedido da sua filha, a também cantora e compositora Bebel Gilberto. Como se chegou até aqui?, interroga-se a imprensa brasileira. Mas todos sabem a resposta.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, nascido em Juazeiro, no estado brasileiro da Bahia, em 10 de Junho de 1931 (hoje a caminho dos 87 anos), tornou-se um ícone não só da música brasileira como mundial ao dar sentido e rosto ao movimento bossa nova em finais dos anos 1950. E ainda hoje é a canção Chega de saudade, uma parceria de Tom Jobim com Vinicius de Moraes que, gravada primeiro por Elizeth Cardoso com João Gilberto ao violão e depois só por ele, já num disco a solo, que simboliza o movimento. Porque foi na batida do violão de João Gilberto que residiu o segredo do novo género musical que então despontava.

Isso foi em 1958. Em 2018, longe da memória desses tempos auspiciosos, o que sobressai nas notícias é o desenlace de um drama pessoal e familiar. “Mais um capítulo da triste história de João Gilberto”, anunciava ontem O Globo, num artigo intitulado “Tristeza não tem fim”, glosando uma das canções a que ele deu voz, A Felicidade, de Tom e Vinicius. Numa crónica publicada na mesma página, Joaquim Ferreira dos Santos lembrava que a bossa foi “a apologia do sol-sal-sul, a grande festa do balanço da juventude carioca”, enquanto “agora a interdição [do cantor] anuncia que, definitivamente, chegou a noite.”

Descalabro agravado

O que se passou, desde que João Gilberto se apresentou pela última vez em público, em 2008? Vários contratempos. Além da lendária auto-reclusão do cantor, dois envolvimentos amorosos vieram agravar a situação e criar uma situação de ruptura com os filhos de João, Bebel e João Marcelo. O primeiro foi com Cláudia Faissol, que em 2003 acompanha o cantor ao Japão com o objectivo de filmar um documentário com ele. “Retornaria do Japão grávida de João e sem filme, que se saiba”, escreveu em Janeiro na edição brasileira do El País o jornalista Chema García Dominguez, num artigo intitulado “João Gilberto, a longa e lenta agonia do inventor da bossa nova.” Zuza Homem de Mello, musicólogo e autor de um livro sobre o cantor (João Gilberto, 2001), diz em depoimento nesse mesmo artigo que, depois da entrada de Cláudia Faissol na vida de João, ele mudou drasticamente: “Da noite para o dia, o trato com João se tornou insuportável. Parecia que tudo o incomodava, o negócio, o público… qualquer coisa o tirava do sério.” Ainda assim, os seus admiradores pareciam dispostos a tudo para ouvi-lo. Em 2011, para comemorar os seus 80 anos, é anunciada uma digressão por cinco cidades do Brasil. João recebe, adiantado, 1 milhão de reais. Mas a digressão é cancelada invocando problemas de saúde. A empresa organizadora pede o dinheiro de volta, chegando a recorrer aos tribunais, mas nada acontece, a não ser a falência de vários empresários locais, notou ainda o El País. Cláudia Faissol queixa-se das autoridades, por deixarem João “desemparado”, mas, encarregada ela própria das finanças do cantor, acaba por assinar acordos e contratos que a prazo só agravaram o descalabro.

Uma medida extrema

Entretanto, Cláudia Faissol saiu de cena e foi substituída por Maria do Céu Harris, uma luso-moçambicana, ex-namorada do cantor, que passou a fazer-lhe companhia na sua reclusão. O que Bebel conseguiu foi, junto da Justiça, a interdição do pai. Isso em Novembro de 2017. Mas como Bebel mora em Nova Iorque, entretanto nada se alterou, excepto o agravamento da situação. João deixou de abrir as portas a quem quer que seja, inclusive aos filhos, e se há uma foto de Bebel com o pai no apartamento, ela sorridente e ele claramente envelhecido, ela é anterior ao corte que colocou uma barreira entre os dois. Agora, a entrada à força no apartamento onde mora o cantor, no Rio de Janeiro, é uma medida extrema a pretexto de proteger o pai e zelar pela sua fragilizada saúde. Lauro Jardim, colunista de O Globo, dava anteontem como certo o pedido feito por Bebel para que fosse arrombada pela polícia, e na companhia de um médico credenciado, a porta do apartamento de João no bairro do Leblon. Mas nem Bebel nem a advogada dela prestaram declarações à imprensa. Só o juiz a quem o pedido foi apresentando se pronunciou, ainda segundo O Globo, dizendo que Bebel Gilberto deverá “indicar um médico de confiança” para acompanhar a diligência, num prazo de 48 horas, zelando-se assim pela integridade física” do lendário cantor e compositor. Exigindo, além disso, que a própria Bebel acompanhe o acto (ela concordou) e esclareça quais “as providências” a adoptar caso haja necessidade de levar João Gilberto para um hospital.

Diz a canção que “tristeza não tem fim, felicidade sim.” E a vida vem dar-lhe inteira razão.