Abdón Porte quis jogar para sempre no Nacional

Centenário da história trágica do jogador que, por amor ao clube uruguaio e não suportar a decadência física, cometeu suicídio.

O documento que identifica Abdón Porte como futebolista
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O documento que identifica Abdón Porte como futebolista DR
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Abdón Porte, em pé, ao centro, na equipa do Nacional DR

Passaram cem anos: na madrugada do dia 5 de Março de 1918, Abdón Porte colocava termo à própria vida, no centro do relvado do Nacional de Montevideu, por não suportar a decadência física e a perspectiva de perder o lugar de titular na equipa do coração. Tinha 25 anos, e tornou-se um mártir do clube, uma figura histórica que continua a ser recordada pelos adeptos. “Pelo sangue de Abdón” é uma faixa que se vê regularmente no estádio El Parque, e o emblema uruguaio utilizou recentemente uma camisola de homenagem a esta “lenda do Nacional”.

A história trágica de “El Indio” Abdón Porte é ilustrativa do fervor com que os adeptos sul-americanos vivem o futebol, esse “estatuto quase-religioso” que os clubes adquirem, como escreveu Tim Vickery na revista World Soccer. O Nacional é um dos clubes com mais títulos no Uruguai, 46, e protagoniza uma rivalidade intensa com o Peñarol, considerada a mais antiga do mundo fora das ilhas britânicas.

No tempo de Abdón Porte, porém, o fenómeno ainda estava praticamente no início. O Nacional havia sido fundado em 1899 e “El Indio” estreou-se em 1911, aos 18 anos de idade. Numa fase inicial jogou como defesa direito, tendo depois avançado para o meio-campo. Seria nessa posição que viria a destacar-se. “Era a alma da equipa, o líder espiritual. Poucas figuras ostentaram características tão bem marcadas como ele. Forte e de uma grande coragem, quando a equipa era colocada em perigo pelos adversários, era quando a sua figura se impunha no campo”, recordou o Nacional no seu site oficial.

Campeão uruguaio em 1912, o Nacional viria a atravessar um excelente momento, com três títulos consecutivos, entre 1915 e 1917. Este foi um ano inesquecível para Abdón Porte, que também integrou a selecção do Uruguai que se sagrou campeã da Copa América (foi o segundo título da “celeste” em outras tantas participações).

“O Nacional era o seu ideal, amava-o como um crente ama a sua fé. Por ele era capaz de tudo. Ninguém se sujeitou a tantos perigos como Abdón. Com um jogo aéreo exuberante, que talvez só pecasse pela falta de elegância, não havia uma parte do seu corpo que não tivesse uma cicatriz ou uma ferida de batalha”, lê-se no perfil publicado no site oficial do clube.

Porém, a dedicação incondicional ao clube iria ter um custo para “El Indio”. “No dia 27 de Maio de 1917, num jogo da Copa Albion, sofreu aos dez minutos uma grave lesão no joelho, mas decidiu continuar a jogar para não deixar a equipa com um jogador a menos (recorde-se que na altura as substituições ainda não tinham sido introduzidas no futebol). Esta inconsciência agravou-lhe a lesão, que o levou a estar um mês parado”, conta o Nacional de Montevideu, acrescentando: “No início da temporada de 1918, a lesão na perna de Abdón começou a provocar-lhe uma quebra de rendimento. O médico já o tinha advertido e ele tinha noção que a carreira de futebolista estava a terminar.”

A estas circunstâncias juntou-se a chegada ao Nacional de Alfredo Zibechi, o que significava competição para “El Indio” pelo lugar no centro do terreno. “O jogo contra o Charley, no dia 3 de Março, desencadeou o trágico desfecho – uma actuação discreta de Abdón fez com que a ideia fatal começasse a tomar forma no seu pensamento”, lê-se no site oficial do Nacional. “Na tarde de 4 de Março visitou o irmão e em jeito de confissão disse-lhe ‘Juan, a minha vida sem o Nacional e sem o futebol não faz sentido’”.

“Nessa mesma noite, após encontrar-se com amigos na sede do Nacional, deixou-os por volta da uma da madrugada e apanhou o eléctrico dirigindo-se ao estádio, já tomada a fatídica decisão. Ajoelhou-se no centro do relvado, no seu posto natural no meio-campo, cenário das suas tardes de glória, e disparou contra o seu coração, colocando termo à vida”, conta o clube uruguaio.

Deixou duas cartas, uma para a família e outra para o presidente do Nacional. “Querido dr. José María Delgado, peço-lhe que faça por mim o que fiz por vós: cuide da minha família e da minha querida mãe”, escreveu Abdón Porte, despedindo-se com um poema: “Nacional, mesmo em pó convertido/ E em pó sempre amante/ Não esquecerei um instante/ O muito que me foste querido/ Adeus para sempre.”

Abdón Porte quis jogar para sempre no Nacional. E, um século depois, a sua trágica história ainda hoje é recordada.

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos. Ouça também o podcast

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