Eutanásia: financeira até ver...

O primado frio das estatísticas que hoje domina a política é, também, uma forma perigosa de se iludir a realidade. Na saúde, antes dos números estão sempre as pessoas, antes da aparência estatística está a realidade percepcionada por cada doente.

Há dias, foi noticiada a demissão de directores clínicos do Hospital de Faro, alegadamente por pressões superiores para que fossem dadas altas médicas mais cedo do que o devido, e também uma “sugestão” para cortes nos exames a idosos. As acusações foram, entretanto, refutadas pela Administração.

Relacionado com este tipo de notícias (recorrentes) lembro-me que, há alguns anos, a propósito de um parecer do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, se falou no “racionamento ético” (foi o termo) no uso de alguns medicamentos oncológicos, contra a sida e artrite reumatóide, responsáveis por parte significativa do gasto com fármacos quando se trata de prolongar a vida dos doentes. No fundo, estaríamos perante a fórmula “viver mais 1 mês custa x, 6 meses custa y. O que fazer?

É óbvio que a economia da saúde está cada vez mais dependente da saúde da economia. Nada de incomum, mas com a enorme diferença de, aqui, estar em jogo o mais absoluto valor: o da vida. Daí a necessidade de uma séria ponderação de custo-benefício e de equidade dos gastos. Pela sua natureza o bem “cuidados de saúde” é, muitas vezes, rival, ou seja, o seu consumo por alguém impede outrem de o consumir, o que se manifesta nas filas de espera, na aceleração inadequada dos cuidados prestados ou na sua degradação.

Por outro lado, o notável desenvolvimento tecnológico tem tendência a aumentar e não a diminuir os custos unitários dos cuidados de saúde, porque frequentemente concretizados por instrumentos cumulativos e não substitutivos de diagnóstico e de terapêutica, conduzindo a uma prática de medicina mais defensiva e cara.

Também é difícil combater o “pecado original” do princípio do terceiro pagante que advém da circunstância de o efectivo promotor dos cuidados de saúde não ser o seu pagador. De um modo caricatural, o médico prescreve, o doente consome, o Estado paga.

Nos cuidados de saúde entrecruzam-se a centralidade da pessoa (e não das corporações), a equidade e a tempestividade no seu uso, estritas regras éticas e deontológicas, a evolução tecnológica alucinante e uma revolução no domínio da genética que levanta novas e insondáveis interrogações. É, pois, necessário maior rigor na gestão dos meios e a assimilação pelo prestador das responsabilidades de gestor de recursos escassos. A tudo isto, porém, responde-se digladiando com ideologia, o que tem tornado a Saúde refém do imobilismo.

No Orçamento do Estado para 2018, a despesa pública global de Saúde será de 10.289 milhões de euros, dos quais 8427 respeitam ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) (não considerando sequer os crónicos défices e o aumento de dotações de capital para os Hospitais EPE). Isto corresponde a 997 euros por cada pessoa/ano e equivale a 84% do IRS arrecadado e a 24,3% da totalidade dos impostos directos e indirectos.

O espartilho orçamental é limitativo, mas não justifica tudo. E muito menos permite visões redutoras do valor da vida. Imersa na primazia da quantidade, a pessoa corre o risco de ser reduzida à condição indigna de “quase-número”.

O primado frio das estatísticas que hoje domina a política é, também, uma forma perigosa de se iludir a realidade. Na saúde, antes dos números estão sempre as pessoas, antes da aparência estatística está a realidade percepcionada por cada doente.

Nos cuidados a prestar às pessoas mais idosas, há mesmo a ideia cretinamente utilitarista e humanamente perversa de que não vale a pena “investir” na saúde dos velhos.

O poder da tecnocracia e da burocracia é também acentuado. Não é por acaso que o sistema de saúde público deve ser o único sector que se queixa da procura e vê o seu aumento como uma fatalidade e não como uma oportunidade! Também o poder do organicismo sobre a humanização dos cuidados de saúde é preocupante. A segmentação e compartimentação das respostas conduzem, não raro, à sua insuficiência e iniquidade para problemas que são globais, ou mesmo à sua omissão funcional constituindo quase “terras de ninguém” (vejam-se os cuidados continuados e geriátricos e a saúde mental).

E não nos esqueçamos que a ética de cuidar vai para além da ética de curar. A ética de cuidar é mesmo decisiva quando falamos da velhice. Se formas explícitas ou larvares de “eutanásia financeira” fazem doutrina, que futuro para os cuidados continuados? Ser velho passou a ser definitivamente um encargo? Dantes, a velhice significava uma dignidade, hoje parece, cada vez mais, significar só um peso.

Em Portugal desvalorizou-se a vida antes do nascimento. Agora quer-se desvalorizá-la antes da morte. Com uma desumana equação de euros versus um pedaço métrico de vida.

Este é o país onde há dinheiro para o aborto voluntário e respectiva licença paga pela Segurança Social. Mas, ao mesmo tempo, querem-se “tabelar”, por razões de insuficiência financeira, cuidados durante a vida ou para o seu tempo final.

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