Os cinco desafiam a música moralista

Turbamulta nomeia a experiência de expansão do trio de Joana Sá, Luís José Martins e Eduardo Raon para quinteto. Música belissimamente esquiva que testa as possibilidades do ensemble de música contemporânea.

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Nuno Carvalho

Foi só quando um amigo lhes mostrou Halloween, quadro do norte-americano Bo Bartlett em que uma criança mascarada de fantasma descansa o olhar triste e que parece roubar toda a hipótese de lhe escapar a quem quer que a esteja a observar, alheia ao movimento que acontece nas suas costas, que o álbum do colectivo Turbamulta desbloqueou. De repente, aquela imagem pareceu dar corpo e sentido às peças que o quinteto de música improvisada formado por Eduardo Raon, Joana Sá, Luís André Ferreira, Luís José Martins e Nuno Aroso gravou já há quase dois anos, mas que parecia ter ficado preso numa zona de indefinição. A alusão de um universo infantil, acompanhada por aquilo que lhes sugeria “uma subversão meio naïf, mas com um potencial altamente poderoso”, casava sem esforço com uma natureza “lúdica, de descoberta, de procura e de jogo”, assim como com a intenção de dinamitar preconceitos aplicados aos ensembles de música contemporânea que estão na origem do projecto.

E isto porque a música improvisada no caso dos cinco elementos da Turbamulta não é uma consequência de formação jazzística, mas antes de uma deriva a partir da música escrita e de uma rejeição consciente daquilo que descrevem como a ditadura da relação entre compositor e intérprete, em que existe “o trabalho nobre do compositor e depois o operário que vai lá suar as estopinhas”, sintetiza Luís Martins. “Às vezes há uma dificuldade muito grande em sair desta rigidez de pensamento da música contemporânea, sempre associada à divisão entre o compositor e o intérprete, entre a partitura e a apresentação, e o nosso interesse era tentar fazer coisas que abrissem outros espaços”, acrescenta a pianista Joana Sá.

Este motor operativo não é propriamente uma novidade nesta turba. Joana, Luís e Eduardo há muito que funcionam como uma célula variável, quer a solo, quer em duos, quer em trio (Powertrio), situações em que a música daí resultante despreza por completo qualquer atitude sobranceira que o mundo regrado lhes possa dedicar. Turbamulta é mais um movimento expansionista de luta contra a identificação de uma crise que associam a um certo esgotamento “do intérprete como o incorporador da obra”. “Isto vai deixar de fazer sentido – pelo menos como única perspectiva”, sentencia Joana. E os três manifestam alguma inveja das outras artes performativas em que estas questões surgem “muitas mais resolvidas”. “Até de mais e com alguns abusos”, brinca o harpista Eduardo Raon. “Mas há abusos que vêm por bem.”

São abusos que atestam da saúde de romper com convenções e estrafegar limites que, na opinião de Joana, apenas reforçam a sua ideia de que “a música é a mais moralista e conservadora das artes”. Ora não se achando salvadores da música contemporânea nem pretendendo farejar pistas para uma qualquer epifania nunca antes experimentada, a verdade é que os três elementos comuns entre o Powertrio e a Turbamulta manifestam um claro desejo em não engrossar figurinos de ensembles prontos a usar, cujas características fornecessem, desde logo, um conjunto de rebeldias e ousadias já discutidas, aprovadas e ratificadas pelas instituições que ditam o que é admissível e absorvível pela música contemporânea autorizada a apresentar-se nas salas de espectáculos.

Nesse circuito, de facto, a ideia de intérpretes-criadores ainda não tem verdadeira expressão. E aquilo que reclamam é, na verdade, que as suas liberdades artísticas não sejam automaticamente varridas para a área apensa ao jazz como única forma de lidar com uma dispensa, provisória, da execução de obras de compositores.

3 para 5

Para quem não é estranho à música do Powertrio, é evidente que o nascimento da Turbamulta não se limita a uma simples operação aritmética de juntar mais dois elementos ao trio, agitar e voltar a abrir as comportas da criatividade seguindo as pegadas anteriores acrescentadas de mais uns pozinhos de violoncelo e percussão. Nada disso. A nova constelação, procurada para permitir um alargamento de possibilidades musicais, faz-se com a inclusão de Luís André Ferreira, antigo companheiro de Joana Sá nas aventuras rockeiras adolescentes dos Pinhead Society, e Nuno Aroso, um dos mais destacados percussionistas no campo da música contemporânea.

E passando para cinco, apesar de algum cuidado consciente de evitar a repetição de dinâmicas já exploradas pelos três Powertrio, a própria natureza dos instrumentos acabou por, sem grande planeamento, reordenar as peças (por famílias de instrumentos) e colocar a guitarra na rota do violoncelo, o piano no campo gravitacional da percussão, a harpa quase sempre como peça-volante, sem fidelidade de qualquer espécie – “Amo a todos de igual modo”, graceja Raon.

Não deixa, no entanto, de haver alguma verdade na piada do harpista. Factor também de surpresa é o papel de elemento condutor que se poderia descobrir no violoncelo, facilitado pela sua particularidade de ser “o único instrumento melódico e de som contínuo” (oiça-se a magnífica A mast, an arm, a head). É uma das faces mais audíveis desse “encantamento dos lugares completamente novos” que norteia a música do quinteto, com uma profundidade mais acentuada do que no Powertrio, fruto dos vários planos que o maior número e instrumentos oferece. Mas há também uma extraordinária sobriedade no não atalhar por uma massa sonora mais intensa que o quinteto poderia agora reivindicar. Na verdade, se há um ganho evidente na passagem deste universo de três para cinco é o de uma música que, menos necessitada de afirmação, se dá ao luxo de ser mais esquiva, de tactear em vários lugares simultâneos dispensando, muitas vezes, a assunção de um centro.

Joana Sá fala disso como a possibilidade de poder resistir “a tentações do diabo e de haver mais possibilidades de sair”. Sair significa aqui poder calar, baixar a intensidade, ficar à escuta – como a criança pintada de Bartlett, dentro e fora, pertencendo e excluindo-se, parando para ver e se deixar olhar.

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