Olhemos para ele

A viver e a trabalhar em Amesterdão, um dos jovens artistas visuais portugueses com um dos mais sólidos percursos internacionais passa por Portugal para apresentar Continente, na Kunsthalle Lissabon. A proposta nasce de um sentimento de resistência: uma resistência em voltar a casa.

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26 anos Iniciou-se na fotografia. Tirou o curso de design de moda em Londres e belas-artes em Amesterdão. Tudo isso está, directa ou indirectamente, presente no seu trabalho. Tal como a família: em 2015, por exemplo, a mãe foi curadora da exposição de Bruno em Serralves, Vista Alegre Nuno Ferreira Santos

Bruno Zhu tem uma relação complicada com Portugal. Ou, para sermos mais rigorosos, Portugal tem uma relação complicada com ele. Filho de imigrantes chineses, sempre foi olhado como estrangeiro no seu próprio país. “Antes, quando voltava de Londres para o Porto, as pessoas olhavam para mim de forma desconfiada, cumprimentavam-me de forma receosa.” Hoje, reflexo directo da gentrificação e de um país eternamente deslumbrado pelo turismo desenfreado (e, já agora, em negação com o seu próprio racismo), ser visto como turista é, para Bruno Zhu, business as usual. “Agora é mais confortável para as pessoas olharem-me como turista, falarem directamente comigo em inglês”, diz o artista de 26 anos, nascido no Porto, actualmente a viver e a trabalhar em Amesterdão. “Para mim é racista na mesma, mas um racismo camuflado que domina toda uma ideologia neoliberal.”

Voltar a casa, e tudo o que isso significa, é a ideia-âncora de Continente, exposição a solo de Bruno Zhu que está desde quarta-feira na galeria Kunsthalle Lissabon, em Lisboa, onde fica até 5 de Maio. E este talvez seja o momento certo para entrarmos mais a fundo no seu trabalho – afinal, é um dos jovens artistas visuais portugueses com um dos mais sólidos percursos a nível internacional. “Toda a proposta da exposição nasce de um sentimento de resistência, uma resistência em voltar a casa”, introduz. “Os objectos com que trabalhei referem-se, numa visão mais generalista, a um sentido ocidental de desejo. Um desejo materialista. Comecei então a construir vários protocolos nos objectos que estão na exposição para mostrar uma posição ambivalente de resistência e de ‘olhem para mim’.”

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Voltar a casa, e tudo o que isso significa, é a ideia-âncora de Continente, exposição a solo de Bruno Zhu que está desde quarta-feira na galeria Kunsthalle Lissabon, em Lisboa, onde fica até 5 de Maio Nuno Ferreira Santos

As ideias de resistência e desconforto estão implicadas tanto na própria disposição das peças como no percurso e encadeamento da exposição, que nos reposiciona enquanto espectadores. “Há objectos que estão fechados, os visitantes têm de pedir aos membros da Kunsthalle para os abrir. A exposição encontra-se em resistência”, explica. O primeiro momento de desorientação (spoiler alert) acontece quando vemos que os dois textos de introdução à exposição são diferentes em inglês e em português. Não dizem a mesma coisa. “Para quem é bilingue, é um convite para que inicie a visita num estado de confusão.” Ambos estão a dar-nos direcções para o Continente (sim, o supermercado). O texto em português conduz-nos até ao Continente de Viseu, perto da loja dos pais de Bruno – onde ele desenvolve um projecto curatorial –, e o texto em inglês leva-nos até ao Continente mais próximo da galeria, no centro comercial Vasco da Gama, que não aparece aqui por acaso.

Há uma referência ao colonialismo, mas “não é directa”. “O discurso pós-colonial explícito não me interessa. Eu não sou o resultado do colonialismo português mas sim de um transnacionalismo que surge nos anos 90 a partir dos fluxos globais económicos. Os meus pais vieram para Portugal para ganhar independência financeira”, enquadra. “Apesar de o mainstream se calhar não considerar que há um peso político aqui – sobretudo em 2018, com tanta sensibilidade às políticas de identidade –, o meio-termo torna-se para mim a posição mais complexa e interessante”, acrescenta. Também o Continente não aparece aqui por acaso: os supermercados, o comércio e os objectos de consumo são uma presença regular no trabalho de Bruno Zhu. “É o reflexo do meu crescimento de classe média, daquilo que foi o meu dia-a-dia. Não é uma escolha cínica, nem irónica, nem crítica. É algo tão familiar para mim que entrou naturalmente.”

Isso está intimamente ligado à noção de família, latente em toda a exposição. Há uma cartografia afectiva a ser projectada, entre a reactivação de memórias, a dimensão territorial, a auto-estima e a vulnerabilidade. “O desconforto que sinto em 2018 é o resultado de viver numa resistência que não é nem activa, nem violenta, mas é como uma erosão. Cria algo que para mim é difícil de descrever. É como se fosse uma mistura de frustração, nostalgia e um sentimento de procura de validação”, diz o artista, que se lembra bem de ter crescido a ver os pais a serem alvo de discriminações. “Mesmo os clientes que iam à loja falavam mal de nós. Para os meus pais, por causa do domínio da língua de nível de imigrante, há um certo distanciamento perante isto, mas a minha geração, que entende perfeitamente a língua, não consegue deixar isso para trás.”

Para que fique bem claro, Bruno Zhu não está a tentar resolver-se. Está sim a “levantar uma questão” que faz sentido abordar aqui, numa exposição em Portugal, e a usar a sua biografia “como uma ficção” para “mostrar outras possibilidades”. “Não quer dizer que te esteja a mentir, mas quer dizer que estou a mostrar que podes ser mais do que aquilo que és. Uso a minha família e o meu espaço privado como a minha posição para tentar abrir caminhos, uma vida multilinear.” Não é a primeira vez que o trabalho de Bruno convoca, directa ou indirectamente, a sua família. A mãe foi produtora de moda na mostra colectiva Gabinete de Moda, apresentada no Gabinete, em 2017. Em 2015, foi curadora de Vista Alegre, exposição individual que Bruno teve no Museu de Serralves na sequência do Prémio Novo Banco Revelação, e onde a irmã era a protagonista das fotografias. Em Continente, a mãe volta a aparecer, “como um fantasma”. Este recurso ao ambiente doméstico é também uma via para estimular novos discursos. “É a ideia de usar a família, que é uma construção tão heteronormativa, como um ringue para jogar significados. O que pode ela ser? Como podemos inverter a presença patriarcal, mas sem a tornar numa presença matriarcal? Talvez através de referências da cultura popular consigamos inverter estas construções conservadoras.”

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Serralves, 2015, Vista Alegre

Arte dentro da loja

Bruno Zhu iniciou a sua prática artística com a fotografia. Agora, serve-se dela como agente de uma presença física, “já não como algo bidimensional e representacional”. No seu trabalho, a presença humana é submetida a uma espécie de desalojamento e materializada em objectos, muitas vezes peças de roupa – o que não é alheio ao facto de Bruno ter tirado a licenciatura em design de moda, na Central Saint Martins, em Londres. “A superfície aleija-te, acolhe-te, tu dormes numa cama, tu tocas numa pessoa, tu abraças um objecto. São coisas vivas. Através desse pensamento comecei a reavaliar a presença humana e o pensar em roupas foi lógico”, assinala. “A coisa mais imediata que me vem à cabeça quando penso em tridimensionalidade e em corpo é a roupa. As peças na exposição estão relacionadas com uma imagem conceptual do ser humano como ser mecânico.”

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Serralves, 2015, Vista Alegre

Esta quebra da bidimensionalidade está também conectada, diz Bruno, a um entendimento queer dos próprios objectos, expresso através da “volatilidade”, “estranheza” e “renúncia à permanência”. “Acredito que o queer, na sua essência, ultrapassa a sexualidade e que é um modo de viver que está sempre em resistência, sempre em mutação, sempre à procura de novas formas de existência.”

E Bruno Zhu procura também novas formas de fazer, expor, transmitir arte. Desde 2016 que desenvolve um programa de curadoria na loja dos pais, A Maior, situada em Abraveses, freguesia de Viseu. Em constante cumplicidade com os pais e os funcionários, organiza exposições colectivas e individuais, com artistas portugueses e estrangeiros, em que os objectos entram em diálogo com o ambiente da loja e os artigos à venda. “São pequenos insólitos que acontecem naquela loja”, conta Bruno. “No Verão reparei que havia pessoas a levarem os amigos para ver ‘o que era aquilo. Acho que toda a gente merece ver, sentir e reagir com que lhe aparece à frente.” No final do ano passado, por exemplo, fizeram uma exposição de árvores de Natal decoradas pelos funcionários da loja.

“Eu não quero estar a separar a arte dos outros campos e indústrias da vida”, sublinha Bruno Zhu. “A arte deve ser um mecanismo de vida como qualquer outro, e acho que é isso que continua a inspirar o projecto na loja dos meus pais.” E não tem de ser bonita, magnífica, transcendental. “Arte bonita e com ambições do sublime é uma porta para a morte. Ou uma porta para a resolução.”

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