A Igreja Católica e os seus (maus) defensores

A tensão que hoje existe no Vaticano é enorme, e bem real, com a distância que separa os mais conservadores dos mais progressistas a crescer de dia para dia.

Já conhecíamos quem fosse mais papista do que o Papa, agora descobrimos uma longa lista de gente que é mais cardinalista do que o cardeal. Ao mesmo tempo que D. Manuel Clemente reconhecia com humildade as fragilidades da nota pastoral onde propôs a “vida em continência” aos casais recasados – “eu quis fazer um pronto a servir e talvez tenha sido esse o perigo”, disse em entrevista ao Expresso –, eis que dois grupos de seus dedicados defensores apenas viram qualidades onde o próprio cardeal reconheceu defeitos. O grupo 1 é composto por agnósticos e ateus que defendem que quem nada tem a ver com a Igreja não se deve pronunciar sobre ela. O grupo 2 é composto por católicos devotos que acusam o mundo de “ignorância” e “superficialidade”, quando não de perseguição às suas ideias.

Só para ficarmos pelas opiniões publicadas no Observador, no primeiro grupo incluem-se nomes como José Manuel Fernandes (“Um dia vai ser proibido ser católico”), Miguel Pinheiro (“Surpresa e choque: a Igreja prega sobre sexo”), Rui Ramos (“A Igreja dos caminhos que se bifurcam”) ou Paulo Tunhas (“O sexo e a Igreja”). No segundo grupo incluem-se Pedro Vaz Patto (“Pastoral do vínculo”), António Pimenta de Brito (“Sair do armário como católico”), Filipa Ribeiro da Cunha (“As pedras nunca saberão o que é o amor”), e os padres Francisco Rodrigues (“O sexo e a cidade”), Gonçalo Portocarrero de Almada (dose dupla: “Delírio em las Vedras!” e “O deputado e o Cardeal”), e um texto do padre Miguel Almeida (“O Patriarca e o sexo dos recasados”). É obra.

Na minha modesta opinião de pessoa que muitas vezes se sente ateia sem nunca deixar de se sentir católica (um dia conversaremos sobre isso), tanto o grupo 1 como o grupo 2 defendem muito mal a Igreja. O primeiro grupo defende-a mal porque a Igreja Católica não fala apenas para os seus, mas para todos – as suas propostas desejam ser válidas tanto para cristãos como para muçulmanos, budistas ou ateus, e por isso o argumento “vocês não pertencem ao clube” é inválido pelas regras do próprio clube. O segundo grupo pressupõe que as críticas a D. Manuel Clemente advêm da velha batalha entre a Igreja e o mundo, esquecendo não só que essa batalha é estapafúrdia – a Igreja está no mundo, não é sua inimiga, e acontece com frequência o mundo ser mais frequentável do que o Vaticano –, mas também que existe uma enorme diversidade de pontos de vista dentro da própria Igreja Católica.

As críticas à nota pastoral de D. Manuel Clemente são extremamente relevantes não por serem reflexo do batido conflito entre a exigência cristã e as facilidades mundanas, mas por reflectirem o mais antigo conflito interno da própria Igreja: o difícil equilíbrio entre o edifício dogmático da lei, que lhe dá solidez, e a pulsão desgovernada da fé, que vivifica a Igreja ao mesmo tempo que a desarruma (um cristão chamar-lhe-ia “o sopro do Espírito Santo”). Papas como João Paulo II e Bento XVI estiveram certamente mais agarrados às exigências do dogma. Francisco está mais agarrado ao espírito do Evangelho. A Igreja dirá que uns e outros não são incompatíveis, mas complementares. Talvez sejam. Mas a tensão que hoje existe no Vaticano é enorme, e bem real, com a distância que separa os mais conservadores dos mais progressistas a crescer de dia para dia. À superfície, esta pode parecer uma polémica sobre sexo. Lá no fundo, é um conflito muito sério sobre o poder dentro da Igreja, como procurarei mostrar no meu próximo artigo. 

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