Refugiados não conseguem trazer os filhos para Portugal

Depois de mais de um ano à espera do estatuto que lhes permite trazer maridos, mulheres e filhos para Portugal, os refugiados que chegam sozinhos ficam meses sem saber quando podem iniciar o processo de reunificação.

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Chegada de refugiados em Março de 2016, a Lisboa. Alguns ainda não conseguiram que lhes fosse reconhecido esse estatuto Daniel Rocha

Para muitos refugiados que chegaram a Portugal através do programa de recolocação da União Europeia (UE), a partir de Dezembro de 2015, a obtenção de um cartão de residente já foi uma vitória.

Na maioria dos casos, esperaram mais de um ano para terem esse cartão por três anos (pelo direito à protecção internacional) ou por cinco anos (pelo estatuto de refugiado) — ambos renováveis por igual período. É um documento de aspecto em tudo diferente da autorização provisória na forma de papel carimbado que antes traziam dobrado na carteira. Mustafa e Hayder, do Iraque, esperaram 18 meses, o mesmo tempo que o sírio Abdul (nome fictício).

Nesse ano e meio de espera, Abdul, 42 anos, acreditou que seria apenas uma questão de pouco tempo. Era o que lhe diziam no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Se soubesse que a espera seria esta, “teria ido a nado até à Turquia”, onde está o que mais precisa. Um mês após ter chegado a Portugal, Abdul começou a sensibilizar a instituição anfitriã — Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) — para a urgência de trazer a sua família: a mulher que estava grávida e os três filhos que ficaram na Turquia, numa zona insegura para sírios e onde as crianças não estão a ir à escola. “O futuro vai ser bom”, acredita Abdul já no fim da entrevista com o PÚBLICO, lançando o olhar para o céu. “O presente é muito pesado para mim.” Abdul não conhece a filha bebé, que já nasceu na Turquia.

Trabalhou muito para juntar dinheiro para sair da Síria. Tinha 2200 dólares para pagar a quem lhe garantiria a travessia da Turquia para a Grécia: o necessário para a passagem de duas pessoas apenas. “O meu pai estava velho e doente, era difícil cuidar dele na Turquia.” Durante o tempo em que o pai viveu com ele em Portugal, Abdul tentou fixar-se em vários trabalhos, mas condicionado pela condição do pai, que morreu em Dezembro. “Prefiro morrer no mar, do que morrer como o meu pai, triste. Morrerei com dignidade, a tentar trazer a minha família.”

Abdul tem uma mala de viagem com rodas. Lá dentro, documentos — os objectos de maior valor, por serem aqueles que mais o aproximam da sua família. Nessa mala, tem dossiers cheios de declarações, certificados e outra correspondência, perguntas devolvidas com promessas desfeitas. “Dizem sempre para esperar.” No SEF, no Alto Comissariado para as Migrações (ACM), “em todo o lado”, reforça o amigo sírio. Dizem-lhe que a condição para trazer a família é ter residência fixa — um T3 porque são quatro crianças — e um contrato de trabalho. “Dizem-lhe tantas coisas”, insiste o amigo: “Abdul já perdeu a esperança em Portugal.”

Um direito fundamental por lei

“A reunificação familiar é um direito fundamental por lei. Não há questão quanto a isso”, esclarece Rui Marques, responsável da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) que acolheu mais de 600 refugiados vindos Grécia e da Itália, nos dois anos que durou o programa de recolocação da UE. “Não é uma opção, é um direito” e não está condicionado a um contrato de trabalho ou residência fixa, garante.

A PAR, criada em 2015, é uma das cinco entidades responsáveis pelo acolhimento de refugiados em Portugal, além da CVP, da câmara de Lisboa, do Conselho Português para os Refugiados e da União das Misericórdias Portuguesas. A organização não se depara com frequentes problemas e atrasos na reunificação das famílias, porque a maioria dos refugiados que acolheu vieram já em família.

Porém, Rui Marques tem conhecimento de situações em que se “colocam desafios de operacionalização desse direito”. E exemplifica: “Basta haver uma família num país onde não existe uma embaixada de Portugal” e todo o processo será dificultado. “Mas o Estado português tem uma responsabilidade.” E se a atribuição dos títulos e documentos cabe ao SEF, a função de apoio nesta questão da reunificação familiar (e noutras) é da responsabilidade do ACM e do seu Núcleo de Apoio à Integração dos Refugiados, esclarece.

Em respostas ao PÚBLICO por email sobre as garantias que o Estado dá aos refugiados que concluíram os 18 meses de programa de recolocação, o SEF garante que “aqueles que não se tiverem autonomizado financeiramente no final do programa continuarão a ser apoiados” pela Segurança Social, “nas mesmas condições dos cidadãos nacionais em situação de carência económica”, para satisfação de necessidades básicas.

Apoio financeiro em dúvida

Os 18 meses de apoio com uma bolsa mensal de 150 euros inerente ao programa de recolocação, no âmbito do qual os refugiados chegaram a Portugal, acabou para Abdul como para quase todos os que chegaram depois de Agosto de 2016.

No entanto, Abdul, que vive num espaço que lhe foi cedido pela CVP em Lisboa, viu indeferido o seu pedido para receber o Rendimento Social de Inserção, pelo prazo de um ano. A Segurança Social invocou o facto de o único contrato de trabalho que ele assinou, em Beja, para a apanha da azeitona, ter terminado sem rescisão (quando Abdul veio para Lisboa).

Para Rui Marques, muitos dos problemas se resolveriam se os refugiados fossem acompanhados, por elementos das instituições anfitriãs, aos serviços onde têm de tratar da sua condição de cidadãos. Embora diga que “a situação dos refugiados é incomparavelmente mais positiva do que a dos imigrantes que chegam a Portugal” sem enquadramento, reconhece que muitas vezes surgem equívocos e obstáculos nas respostas dos organismos do Estado.

O caso de Abdul só é único para ele. Único como os documentos envoltos num envelope em cartão que não ousa abrir, com receio de quebrar a viabilidade da sua própria vida. No envelope estão quatro passaportes — da mulher e dos três filhos com mais de dois anos — que foram enviados para a embaixada da Síria em Ancara, na Turquia, onde foram certificados, carimbados e reenviados para Istambul, onde está a família de Abdul, e depois enviados para ele em Portugal. Tudo por correio expresso DHL, o que lhe custou umas poucas centenas de dólares. E fê-lo de acordo com o que lhe tinha sido dito pelo ACM, que era necessário cumprir os trâmites para garantir a reunificação da família.

E depois de Abril?

Já tem os passaportes com ele há uns meses. Falta-lhe um compromisso do ACM, imagina que virá de uma reunião que ainda não foi marcada. Já o SEF agendou em Agosto de 2017 uma entrevista para Abril de 2018.

Abril sobressai no seu horizonte sem esperança. E depois de Abril? Não o diz, mas também não o esconde: esse medo que se entranhou nele de lhe dizerem, com calma e ligeireza, que tem pela frente mais um mês, e depois outro, e outro, de espera. Quase se comove. Mas é um sorriso que esboça quando recorda que Marcelo Rebelo de Sousa lhe fez a promessa, pessoalmente, de que a família viria para Portugal. Mostra fotografias desse encontro durante uma visita do Presidente ao Alentejo, em Abril de 2016.

Também Hayder, do Iraque, e Fatma Shekho, da Síria, lutam como podem pelo direito de juntar a família, desde que chegaram a Portugal em Março de 2016. Hayder tem o estatuto de refugiado desde Novembro de 2017 mas ainda não lhe deram resposta aos seus pedidos de reunião no ACM ou no SEF para tratar da vinda da mulher e dos quatro filhos. Fatma, que ainda não recebeu o estatuto de refugiada, tentou começar a tratar, com antecedência, da vinda do marido que ficou retido na fronteira da Síria. Em vão. “Já foi ao ACM, ao SEF, a todo o lado”, diz o amigo Bilal, sírio de Damasco. “Dizem que não conseguem.”

No ACM (que não respondeu às perguntas do PÚBLICO em tempo útil), explicam a Fatma que só depois de ter o cartão de residente poderá tratar disso. “Mas ela precisa de ir buscar o marido. O filho tem dois anos e meio e precisa do pai, que não vê há dois anos”, insiste Bilal, emocionado, num português quase fluente. “Ela precisa mesmo de o trazer. Para viver. Para tudo.”

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