Toda a música negra americana num homem só: Amp Fiddler

Compor, tocar, cantar, produzir, gravar: é tudo isto que Amp Fiddler faz, desde os anos 70, ao lado de gente como Parliament-Funkadelic, Prince, Jamiroquai ou Slum Village. Mas também há uma valiosa carreira a solo e um novo disco para apresentar amanhã no Porto.

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O homem eternamente na sombra, virtuoso compositor, cantor, produtor e multi-instrumentista (pianista de formação) nascido em Detroit, cidade da Motown e de alguma da nata do hip-hop

Se, por esta hora, o leitor ainda não tiver ouvido Amp Dog Knights, o último disco de Amp Fiddler editado em finais de 2017, nada de estranho aí haverá (mais estranho, porém, o facto de este desconhecimento se estender a prestigiadas publicações). Nada, porém, que incomode muito o norte-americano quando estiver a tocar no concerto de apresentação desse disco sábado à noite no Indústria, no Porto (volta a 31 de Março para actuar no Lux), no âmbito de uma tour que vai desde Mumbai a Melbourne. Ele é, afinal de contas, o homem eternamente na sombra, virtuoso compositor, cantor, produtor e multi-instrumentista (pianista de formação) nascido em Detroit, cidade da Motown e de alguma da nata do hip-hop (J Dilla, Eminem, Royce da 5′9″), com um percurso singular na história da música negra americana. E, ao contrário do que a aparência pode indiciar – apesar daquele sempiterno ar coolzíssimo, conta já 59 primaveras –, no seu caso, quando falamos em “história”, falamos a sério, de uma com início nos anos 60-70: depois de ter aprendido a colocar os dedos nas teclas com nada mais, nada menos do que Harold McKinney (grande pianista de jazz que tocou com Coltrane ou Wes Montgomery), passou, ainda adolescente, a tocar nos Enchantment e, pouco depois, com 18 anos, na The Holy Mothership. Onde? Isso mesmo, nos Parliament-Funkadelic de George Clinton. Mas isto, que já chegaria para abrilhantar o CV de qualquer um, foi só o início de um trajecto onde a palavra “colaboração”, mais do que constante, talvez seja mesmo a mais importante: ao longo de várias décadas, o ubíquo Amp compôs, arranjou, gravou, produziu e tocou ao vivo em incontáveis trabalhos de terceiros – e de terceiros tão requintados (verdadeiramente históricos, em alguns casos), para além dos P-Funk acima referidos, como os de Prince, Moodyman, os seus conterrâneos Slum Village (reza a lenda que foi ele quem mostrou como mexer numa MPC a J Dilla e Q-Tip pela primeira vez), Maxwell, Brand New Heavie ou Jamiroquai. A passagem do tempo – melhor dizendo, o seu efeito nostálgico e distanciador – dá-nos, por vezes, a sensação de que os grandes artistas do passado foram mais icónicos, provocadores ou simplesmente virtuosos do que os de hoje. Amp, que viu de perto tudo a acontecer, sublinha que, “na maioria das vezes, o talento vai crescendo. Até George Clinton era, naquela altura, um jovem artista que tinha de aprender não só a arte da produção e dos arranjos, como da própria vida… No início, todos percorrem um caminho desconhecido sem saberem onde chegarão”. Mas mais do que os nomes, o que eles revelam: um trabalho contínuo no tempo de Amp com as grandes – senão todas – correntes da música negra do século XX, do jazz ao funk, do hip-hop ao R&B, da soul (e da neo-soul) à electrónica, chegando até a colaborar, fora desse círculo, com o rock escocês dos Primal Scream ou do californiano Warren Zevon. Quando lhe perguntamos de onde lhe vem esse espírito colaborativo, Amp remete-nos para o seu círculo familiar: “Vem do facto de eu ter um irmão [Bubz Fiddler, baixista ainda mais discreto do que Amp e que também colabora no novo álbum] que também é músico! Partilhávamos tudo, especialmente a composição. Tocar ou improvisar com alguém cria um ambiente e uma vibração completamente diferentes de quando o estás a fazer sozinho. E isso também se reflecte quando escreves uma canção: ela torna-se mais diversa consoante a energia que as pessoas trazem”. Essa total disponibilidade para os outros talvez tenha acabado por retirar um pouco da pujança da sua carreira a solo, embora isso não lhe tire o sono por um segundo, homem cuja discrição no showbiz rima com a que demonstra na hora de conversar (sem prejuízo da assertividade).

“Isso [o hipotético menor fulgor da sua carreira em virtude da disponibilidade para apoiar outros músicos] é uma questão de medo e de egoísmo. Esse tipo de questões não entra no meu mundo! O bom karma vem de darmos aos outros, e nem sempre de sermos nós a estar na mó de cima”.

With Respect (1990) foi o álbum de estreia a meias com o irmão, o seu primeiro e único LP editado nos anos 90. A solo mesmo, e depois de dois curtos EP (Basementality e Love and War, 2002 e 2003), foi preciso esperar catorze longos anos por aquela que é unanimemente recordada como a sua magnum opus: Waltz of a Ghetto Fly (2003), “valsa” negra que marcaria para sempre a geração e o som da neo-soul (Erykah Badu, D’Angelo, etc.) quando esta começava a perder fulgor, e que qualquer ouvinte familiarizado com música negra vai buscar à estante quando se quer lembrar do melhor que se fez no início dos anos 2000 (a par dos lançamentos de Angie Stone ou Jill Scott) – é um disco que, ao contrário de With Respect, se ouve, hoje, sem a nostalgia pelo anacrónico, antes conservando intactos, perfeitamente frescos, o seu som e o seu feeling. O americano prosseguiria depois com um ritmo assinável quer a solo (com Afro Strut e, em 2016, Motor City Booty), quer em colaborações (no pouco conhecido mas formidável Inspiration Information, 2008, a meias com a dupla jamaicana Sly & Robbie, e Kindred Live, 2017, com a banda funk sua conterrânea Will Sessions). Pelo meio, em 2009, uma tragédia pessoal, com a morte inesperada do filho de 18 anos (complicações derivadas de diabetes), baterista (e trompetista) que se perfilava para ser a drum machine do formato live do pai… No seu percurso caleidoscópico, de uma desmedida riqueza, Amp talvez seja, afinal, o perfeito exemplo da ponte entre o clássico e o moderno, no sentido em que a sua obra tanto reflecte um modo de composição com recurso a instrumentos “convencionais” (e respectiva ressonância orgânica), como a utilização intensiva de samplers, computadores e outra maquinaria digital mais moderna, amálgama que se subtrai a apreciações unívocas e de míope alcance - desde logo a dos puristas para quem as estéticas de sampling não constituem “verdadeira” música, o que quer que isso (não) signifique.

E por falar em clássico e moderno, tem-se assistido, nos últimos tempos, a uma certa revitalização do funk – nas suas mais diversas ramificações – no panorama mainstream (fora desse radar mediático, ele continua vivíssimo, claro), fenómeno interessante de abordar com alguém que faz gala de sempre o ter preservado (Funk Is Here To Stay era o título de uma das canções de Motor City Booty), embora Amp goste de clarificar o grande pano de fundo da sua obra: “Podem qualificar os meus álbuns como quiserem, mas trata-se sempre de soul. Estou constantemente a juntar elementos e ritmos variados com música soul. Nunca estou apenas num só género”. Mas voltando ao funk: da roupagem pop (mas meritória) que lhe deu recentemente Bruno Mars à toada electrónica, boogie, de Dâm-Funk, passando pelos Snarky Puppy (e outros: Vulfpeck, Tuxedo, o próprio Kendrick Lamar), chegamos, sobretudo, a esse fabuloso disco que é Awaken, My Love! (2016), de Childish Gambino, claramente embebido na energia dos Parliament-Funkadelic de que Amp fez parte – “Adoro esse álbum! Aliás, tenho esse álbum! E aquele sample do Bootsy [referência ao sample de I’d Rather Be With You de Bootsy Collins utilizado por Gambino em “Redbone”], meu… Sou um grande fã!”.

O lugar de onde nunca saiu

Particularmente em Portugal, e como rapidamente se constata em conversa com amigos ou conhecidos (não necessariamente alinhados com os nossos gostos), Waltz of a Ghetto Fly deixou uma marca muito forte, e a isso não será alheio o convite que, em 2013, os Orelha Negra lhe endereçaram para integrar Mixtape II, na qual empresta voz à primeiríssima canção, Queen of Hearts. “Adoro essa canção porque é e, ao mesmo tempo, não é o som-Amp Fiddler. E também porque me mostrou um lado diferente da minha voz… Eu senti que estava a escrever para um filme do Tarantino! Adoro esses tipos, mas ainda não nos chegámos a encontrar pessoalmente”. Se bastaria que os Orelha Negra fossem americanos para se tornarem world-renowned como uns BadBadNotGood? “Sim! Eu próprio não sou grande na América, mas não nos podemos lamentar com essas coisas. Temos apenas que continuar a fazer música e, eventualmente, o mundo saberá”. De resto, Portugal não é um lugar estranho para o músico, que por cá actuou já várias vezes, a última das quais no LISB-ON do ano passado (“Os concertos aí têm sido sempre rápidos demais, entrar e sair. Espero que, no futuro, possa ficar mais tempo e conhecer algumas pessoas”, confessa). E que novo trabalho é este, então, para ouvir já amanhã, ali mesmo à beira-mar, numa das mais antigas casas do Porto, com Amp em registo one man show (“O Traktor, teclas, um looper pedal e o microfone são as minha banda neste momento!”)? É, desde logo, um disco feito in media res: “Criei o álbum pelo meio de outros dois que estavam parados. Sentei-me com o Moodyman [lendário produtor de house de Detroit, seu amigo e colaborador de longa data] e escolhemos as canções em que podíamos trabalhar para fazer o disco. Adorei o resultado final, porque corresponde ao meu permanente esforço criativo de misturar o velho com o novo”. Amp, por tudo aquilo que atrás escrevemos, é um desses esmerados artesões que não saber fazer um mau disco, ou, dito de outro modo, alguém que, mesmo quando não saca um coelho da cartola, traz sempre propostas aprimoradas e saborosas, sem tempo nem lugar – soul, justamente. É o caso deste Amp Dog Knights, em cuja primeiríssima faixa (Grandma’s Radio), o americano avisa logo ao que vem: “It’s the next thing, it’s the funk thing, it’s the jazz thing!”. E, logo na canção seguinte, um tratado de black music para comprovar o statement inicial (“Detroit players in the house tonight…”, ouvimos-lhe): balanço rap (beat de J Dilla, que se repete em Through Your Soul, alguns dos instrumentais que, antes do autor de Donuts morrer, foram parar às mãos de Amp através de um amigo que os havia comprado na “candonga” desconhecendo a sua autoria, e que depois de Amp, suspeitando do seu traço característico, os mostrar a Dilla, se confirmaram ser os que estavam desaparecidos desde um assalto a sua casa) e guitarra funky, voz soul de Neco Redd no refrão e, introduzidas por uma progressão alternativa de baixo acompanhada do surgimento das teclas, as rimas de T3 (membro dos Slum Village) a fechar a parada. Não por acaso, esta segunda canção intitula-se Return Of The Ghetto Fly – regresso do tipo mais “fly” (slang para cool, fixe, pintarolas) e alusão explícita ao seu memorável álbum –, a qual se inicia com Amp, cheio de swing, a perguntar ao ouvinte se teve saudades suas. Um “return” que, mais do que tirada de charme, é, efectivamente, um regresso à matriz soul e funk do seu icónico disco de 2003, depois de, no álbum anterior (Motor City Booty), ter percorrido, sobretudo – e se dizemos “sobretudo”, é porque cada disco seu é sempre um concentrado da música negra –, paragens mais dançantes ligadas ao house (que, recorde-se, teve um importante período de afirmação na Detroit dos anos 80, para não falar, claro, do techno). Embora, é certo, ele (house) não deixe de estar presente neste novo álbum, esse proto deep house – mais próximo de Chicago do que da sua terra-natal, então – que se ouve, por exemplo, em Good Vibes e I’m Feeling You (esta última mais interessante, sobretudo a partir dos terceiro minuto, quando aquelas teclas desconcertantemente groovy afloram), talvez as canções perfeitas para quando Amp abandonar o palco e passar o testemunho aos DJs que comandarão o resto da noite (André Cascais, João Tenreiro e João Dinis). O certo, porém, é que esses momentos valem, sobretudo, pelo o que de curiosidade “historiográfica” carregam (esse e outros trilhos do house não deixaram muitas saudades, papel de parede de “sunsets” e “gins tónicos” em que se converteram), e a verdade é que é quando se move nos terrenos mais clássicos do funk e da soul que o disco, de uma grande energia coral, atinge os seus momentos áureos. É o caso – além da já referida Return Of The Ghetto Fly – de It’s Alright (que o detroitiano oferece em duas versões, uma up-tempo, muito “dâm-funkiana” e marcada pelos sintetizadores; outra mais soulful e abrilhantada por um omnipresente e sensualíssimo riff de guitarra) ou Through Your Soul, malha que, se tem o género no seu título, é mais do que isso (do que música soul): é música zen, como se – brincadeira especulativa – tivesse sido feita não por afro-americanos, mas por afro-japoneses. Put Me In Your Pocket, com o efeito wah da guitarra eléctrica a dar o tom desde o primeiro segundo e acompanhado de outros virtuosos exercícios de cordas, puxa o disco para uma onda rockeira (embora mesclada com o rap/spoken word a terminar), logo a seguir desmentida pelo cosmos quente, colorido, pacífico, de No Politics (o omnipresente hi-hat em fundo a dar o groove certo), no qual as vozes de Amp e, novamente, de Neco Redd (onde anda ela?! Só lhe conhecemos um obscuro EP de 2015, No Discipline, e uma não menos esquecida mixtape The Full Disclosure no ano seguinte, e é uma pena) surfam com a maior das descontracções. Dissemos que o house talvez fosse a melhor ponte de fecho do concerto para o resto da noite, mas quiçá não caísse nada mal se, antes do DJ pôr o público a mexer as ancas, o americano terminasse mais melancolicamente – como termina o disco – ao som de “Say So” (baixo tão distorcido que até parece que fala) ou, sobretudo, I Get Moody Sometime (que, num castiço trocadilho, conta com a participação de Moodyman). É, talvez, a melhor canção do disco, uma absolute gem para fazer coisas que, escritas, só soariam a desajeitada caricatura (sugestão: ouvir, logo a seguir, “With You”, de Terrace Martin, um “fiddleriano” da Califórnia). Digamos apenas, por isso, que é para ouvir no Indústria – as outras coisas ficam para fazer a seguir.

 

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Notícia corrigida: o concerto no Indústria é sábado e não sexta-feira como tinha sido escrito

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Apresenta o novo disco amanhã à noite no Indústria, no Porto (volta a 31 de Março para actuar no Lux), no âmbito de uma tour que vai desde Mumbai a Melbourne
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