Aqui, no inferno do mundo

Ficções, dotadas de uma fortíssima carga imagística que elegem temas universais, como a maternidade, a doença ou o envelhecimento, deslocando sempre o seu raio de acção do particular para o universal.

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O imagismo de Perezagua paraleliza-se com o cuidado que a autora põe na construção, no artesanato da narrativa

As ficções contidas em Tempestade são exemplos inesperados e de laboriosa construção que demonstram que nada de humano deve ser estranho a um criador — máxima tão válida no tempo de Terêncio como na contemporaneidade que partilhamos com Marina Perezagua. Estes contos constituem uma acção de espeleologia às profundezas mais cavadas do comportamento humano. E daquilo que nele há de mais tenebrosa desumanidade. Daí que a crueldade, a aparente frieza, ou aquela que é demasiado real, atravessem de forma tão vincada estas criações da escritora espanhola. Há histórias de uma crueldade extrema, que projectam horizontes de inconcebível maldade, em guerras destruidoras, ou nas mais encarniçadas pelejas a dois, como em Aquele Que Se Rendeu, onde uma mãe arquitecta um diabólico plano de gerar um filho como a semente de uma vingança com um fim que tem tanto de inesperado como de inominável. Perante semelhantes exemplos de abominação, concretizados nos casos individuais de personagens (inviamente) exemplares, nunca deixaremos de parte que é a humanidade, e não um ser humano particular, que está em julgamento. É a espécie, não o espécime, o que se encontra sob a lente inclemente e rigorosa de Perezagua. Um caso diametralmente oposto ao daquele conto, na hierarquia familiar, mas análogo na intensidade da infâmia, estará patente em Aniversário — “não há melhor pai do que um mau pai que afasta de si a filha” (p.132). Nele, há uma filha que visita o pai acamado, num inquietante ajuste de contas que aguardará até às penúltimas linhas para afirmar em pleno a sua perfídia (a sua justiça?), servindo a vingança como o prato frio que os preceitos recomendam. A gestão da narrativa procede de modo análogo, calibrando as afirmações, pesando os dados, revelando de forma parcimoniosa e precisa, no momento certo.

Até mesmo um instinto na aparência conciliador, como é o da maternidade, produz resultados tão vários quanto é diversa a individualidade humana. Longe de ser um elemento agregador, a ideia de maternidade, que caracteriza uma parte tão substantiva destes contos, adquire as mais distintas formas, que vão desde a obediência a esse apelo até à “crosta seca da infertilidade” (p.131). A mais radical de todas as abordagens surge, porventura, no conto A Alga, onde a maternidade ganha foros de uma sinistra distorção, provocada por uma memória de infância que repesca um episódio onde se misturam lagartos, incubações, eclosões e um desconforto que tudo percorre como um sangue malsino. Paralelamente a este veio fundamental destas narrativas, está uma quantidade apreciável de doentes, debilitados, moribundos, ou acamados. Esta circunstância resulta, não da obediência a qualquer impulso mórbido, mas da materialização de uma ideia de vulnerabilidade humana, de uma exposição a todos os perigos que preenche parte significativa destes contos — “A agonia é uma esponja que, quando se ensopa, deixa de absorver.” (p.188) Em poucos contos como em A Caça de Bonecas essa fragilidade terá sido tratada de forma tão pungentemente eficaz. As crianças são como um concentrado de todas as ansiedades do mundo, convergindo para o mais vulnerável receptáculo. O frenesim que toma conta da acção, o desconchavo que agita a comunidade, começam, prolongam-se e extinguem-se na pessoa das crianças.

Mais do que um conto de A Tempestade decorre em cenários pós-apocalípticos, mundos devastados por guerras ilocalizáveis, de efeitos disseminados através de paragens onde os sobreviventes arrastam existências destituídas e breves, rentes à condição animal — “nesta aula que é um campo de batalha a fumegar, nesta propriedade de alicerces sem estruturas, de telhados destruídos e esparsos pelo chão, de chão a espreitar por entre corpos» (p.74). O caso mais extremado é, porém, o de Homo Coitus Ocularis, no qual os excessos da ciência ditaram uma extinção praticamente generalizada da espécie humana, resumida a um derradeiro casal sobejante.

Uma vez que estes contos fornecem uma exploração intrépida, uma análise sem tréguas, de seres e acções, o símile é um dos seus recursos de eleição. E porventura aquele com o qual Perezagua eleva os seus contos a prodígios da linguagem — Como se fosse uma alga, o meu corpo segue à mercê de movimentos alheios.” (p.203) As comparações de Perezagua são estratégias audaciosas, atraídas por pontos desencontrados que lhe permitem capturar momentos de definição especialmente difícil, por excesso de incidências, ou por uma intrínseca estranheza — «Como as mãos do mimo que tentam procurar uma saída desesperada num enorme vidro inexistente, a língua tinha compreendido a falácia da janela» (p.49). Os contos de Marina Perezagua são marcados por uma imagética conturbada, que manipula a ordem natural e a lógica interna das proposições — “Na orfandade desta terra em glaciação e guerra, a tua boca é a gruta onde ressoam as únicas palavras que me consolam, e comer dela é, para mim, beber do teu eco, beijar o mamilo da tua cabeça.” (p.35) Há imagens distribuídas ao longo dos enunciados destes contos com uma grande sofreguidão — “Há uns dias, quando um polícia mandou parar a carruagem, gostava de ter sido os olhos dele para te poder ver.” (p.42) Quase palpáveis, na sua intensificação, na força motriz que têm na economia narrativa e na consolidação estilística destas ficções. O imagismo de Perezagua paraleliza-se com o cuidado que a autora põe na construção, no artesanato da narrativa. Por exemplo, o sincronismo de processos no conto “Um Só Homem Só” conduz a uma situação habilmente paradoxal, em que o tempo e a lógica se contorcem para que a narração dos últimos momentos de um condenado à morte sejam percepcionadas simultaneamente como se soubéssemos e não soubéssemos o destino final da personagem. No entanto, trata-se, mais do que simples torção e esventramento da lógica, de uma superação. O protagonista é o inviável ponto de chegada para uma linha sinuosa que atravessa as eras e transporta uma semente familiar trans-histórica que se fixa na estranha conclusão que marca o corpo do condenado. Por outro lado, a técnica de encaixe está especialmente patente num conto como “Little Boy”, no qual são embutidos na generalidade da narração inicial acontecimentos subsequentes ao bombardeamento de Hiroxima. Este conto constituiu, de resto, a base, uma espécie de balão de ensaio, para o romance Yoro (Elsinore, 2016), que expandiu e magnificou a história de H, sobrevivente do grande desastre nuclear. Em Little Boy, conto e narradora apropriam-se de um mesmo processo. A imaginação da narradora leva-a “imaginar fotogramas a partir dos detalhes que ela [H.] foi descrevendo” (p.97); o conto pegará nessa ponta solta e comporá a partir dela o seu tecido narrativo. Os fios empregados por Perezagua permitem-lhe cruzar vários tipos de linguagens e registos, que vão da historiografia aos documentos e testemunhos pessoais. O resultado é uma ficção que se vê injectada de um dinamismo perturbador, que encaminha os acontecimentos por uma espécie de determinação inescapável. Os acontecimentos da fase derradeira da Segunda Guerra Mundial fundem-se com a história de uma cultura milenar trespassada pelas consequências letais da ofensiva norte-americana. Uma vez mais, é, paradoxalmente, do “sangue do Japão” (p.105) que se trata — mesmo se o terrível caso de H. centraliza os circuitos do conto —, devido à universalidade dos padecimentos, que calam fundo em questões fundadoras, como identidade, género, ou maternidade. Daí que os sucedimentos do conto nunca sejam apenas os de uma ou de outra personagem, mas os de um vasto mundo em redor.

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